Os mistérios em torno de uma personagem histórica que deu origem a uma das lendas mais tradicionais (e assustadoras) no Recife

Conta a lenda que Branca Dias era uma rica dona de engenho vivendo tranquila no Recife de antigamente até que começou em Pernambuco a perseguição aos judeus promovida pela Inquisição: um tribunal formado a partir da Idade Média por religiosos da Igreja Católica para revelar e punir pessoas que não eram cristãs e que supostamente cometiam bruxaria. Branca Dias praticava em segredo a religião judaica e sabia que se aproximava a sua condenação – tanto por sua crença, quanto por ser dona de uma magnífica coleção de objetos de prata que poderia se confiscada pelos perseguidores.
À primeira menção de que a Inquisição viria pegá-la, Branca Dias juntou todos os objetos valiosos os atirou num riacho que corria no terreno da vasta propriedade na qual morava. Os temores da mulher se concretizaram: ela foi levada para Portugal, julgada e condenada à morte. Já o curso d’água ficou conhecido a partir de então como “Riacho da Prata”, e depois como “Riacho do Prata”.
Localizando no Bairro de Dois Irmãos, durante muito tempo o riacho serviu como manancial para abastecer a capital pernambucana. O açude criado para viabilizar esse abastecimento hoje quase não é mais usado para esse fim e permanece esquecido numa área pouco frequentada que atualmente faz parte do Horto de Dois Irmãos, o zoológico do Recife.

Mas, graças ao imaginário popular, a trágica história da judia perseguida desaguou numa narrativa carregada de mistério e espanto. Alguns anos depois começaram a correr histórias de que uma aparição estava afastando as pessoas que passavam por um riacho no subúrbio do Recife: o fantasma de Branca Dias nada mais estaria fazendo do que guardar o tesouro.
Antes de prosseguir com essa história, é preciso falar de uma velha superstição: até meados do século XX, as moças que sonhavam com um casamento tinham o costume de olhar as águas de rios e córregos na noite de São João para tentar enxergar a figura do marido que estaria destinado a elas – uma das tradicionais formas de “adivinhação” ou “simpatia” praticadas durante a festa. As jovens que obtinham a visão ficavam contentes e esperançosas. As que não viam nada permaneciam inquietas, pois era grande a possibilidade de “ficarem pra titia”.
Pois bem: ainda nos tempos dos engenhos, uma dessas moças teria ido com sua mucama às margens do Riacho do Prata. Chegando lá, fez com que a serviçal, de nome Luzia, ficasse esperando à distância enquanto ela tentava a sorte. Afoita, se aproximou da margem a ponto de quase cair na água escura. De repente, a mucama teve um pressentimento. Ia dizer para a iaiá sair da beira do riacho quando ouviu um grito:
– Me acuda, Luzia! Me acuda que ela quer me levar!
A mucama não encontrou mais a patroa. Ela teria sido levada por Branca Dias. Por décadas se falou que, em noites de lua, duas moças nuas eram vistas no meio do Açude do Prata. Uma seria rica judia; a outra, a sinhazinha que sumiu na noite de São João.
Estudiosos judeus explicam, no entanto, que a lenda não tem fundamento histórico. Em meados do século XVI, existiu em Pernambuco uma cristã-nova (uma judia de nascença convertida ao cristianismo) chamada Branca Dias, esposa do dono de engenho Diogo Fernandes (também cristão-novo), que de fato foi acusada pela Inquisição de praticar o judaísmo. A mulher chegou a ser presa, mas não foi morta a mando dos inquisidores – acabou sendo libertada depois de cumprir parte da pena a que havia sido condenada.
A confusão a respeito da personagem veio do romance chamado “Branca Dias de Apipucos” escrito no século XIX por Joana Maria de Freitas Gamboa. A obra deu uma nova versão sobre a vida da judia, transpondo erroneamente a história de Branca para o tempo da Guerra dos Mascates (século XVIII). A verdadeira Branca Dias é considerada uma heroína por preservar a cultura e religião judaicas numa época de grande preconceito contra os judeus no mundo católico.
Mas, mesmo diante dessa constatação histórica, ainda há quem garanta que o espectro de uma mulher assombra os arredores do Açude do Prata. Trajes antiquados, longos cabelos ruivos ao vento, expressão de soberania: assim ela é vista à noite, em pé na sacada do casarão antigo que existe em frente ao manancial. Veja a foto do lugar:

É como se a sinistra figura feminina estivesse vigiando o tesouro de prata oculto pelas águas silenciosas. E não adianta argumentar que o tal casarão é uma construção do século XIX e que foi usado inicialmente como sede administrativa de uma empresa pública que operava o abastecimento hídrico da capital. As testemunhas da aparição não vacilam ao afirmar:
– Eu vi o fantasma de Branca Dias!
Contado por Roberto Beltrão/ Ilustração: Fábio Rafael
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