Para se curar de uma moléstia, ele pede ajuda ao “Velho do Saco”
Por anos a fio, o temor de muitos moradores do Recife esteve relacionado à inclemência de um tipo de monstro desalmado que, segundo dizem, não hesitava em raptar e matar crianças para roubar-lhes o fígado. O povo o chamava Papa-figo, pois devorava o órgão arrancado dos corpos das pequenas vítimas. Contam que, periodicamente, assassinos com tal comportamento atuavam em distintos bairros da capital pernambucana como São José, Graças, Benfica e Dois Irmãos. E também se têm notícias deles nas pequenas localidades da Zona da Mata, como os povoados em torno das usinas açucareiras. Por isso, mães pernambucanas de várias gerações usaram esse bordão para domar os filhos desobedientes:
– Menino vem pra casa, sai da rua, senão que o Papa-fica te pega!
De acordo com os relatos, o Papa-figo comete esse tipo de atrocidade não por prazer, mas para curar-se de uma horrível doença no sangue que o deixa abatido e deformado pelo surgimento de chagas asquerosas. Conforme a tradição, o remédio para a misteriosa síndrome seria comer fígado de criança – e quanto mais gorduchinha e corada ela for, melhor. Há quem diga que existem duas “espécies” de Papa-figos: um deles de aparência quase normal, confundível com qualquer pessoa, pois disfarça as suas pústulas com roupas fechadas; o outro seria um sujeito de pele amarelada, de orelhas maiores que o comum, peludo e com unhas grandes e sujas.
Seja feioso ou não, o Papa-figo tanto pode atuar sozinho como se valer de fiéis comparsas para escolher e capturar os pequenos. O relato mais conhecido remete a algo que teria ocorrido no final do século XIX, época em que boatos assim ganharam força. Um senhor de família influente no Recife foi acometido pela estranha doença. Os sintomas se manifestaram logo: começou a ficar amarelado e sem ânimo. Também não suportava ficar exposto à luz do sol, pois se cobria logo de ferimentos. Contaminação do sangue, diziam.
Os poucos que o viram ficaram tomados de pavor. Os médicos não conseguiam prescrever medicação eficiente. Tornou-se recluso, deprimido, raivoso. Uns mais supersticiosos diziam que ele estava virando lobisomem. Quando as coisas pareciam sem esperança, um negro velho, empregado da família, chegou para o senhor e disse:
– O sinhô tem cura, mas tem que comer figo de criança nova. Se quiser eu saio pra caçar.
O empregado recebeu autorização do patrão e seguiu pelas ruas dos subúrbios, com um saco nas costas, pegando meninos. Usava doces para atraí-los. Desatenta por causa do sabor do “nêgo bom”, o tradicional bombom com banana, a presa era sufocada sem esboçar reação e metida num saco grande e sujo, desses usados para transportar açúcar tipo demerara. Quando perguntavam ao velho o que levava no saco, ele dizia que eram ossos de boi ou carneiro que serviriam para refinar açúcar.
Em outras situações, até recém-nascidos eram raptados, tirados sorrateiramente do berço num momento de distração da mãe. Nesses casos, o velho se encarregava de deixar uma quantia de dinheiro no berço vazio. De volta à residência do patrão, o malvado retirava os fígados e os oferecia ao convalescente, que precisava consumi-los ainda frescos e crus. Pouco a pouco, com o remédio macabro, o senhor foi melhorando até a cura completa.
Esse foi apenas um dos papa-figos que aterrorizaram as famílias do Recife. Ao longo das décadas, aparentemente eles se tornaram mais refinados e sutis quanto ao “modus operandi”, como se diz no jargão policial. Em meados do século XX, surgiu outro boato, desta vez composto por histórias que envolviam um carro preto.
Num dos casos mais comentados, crianças brincavam num descampado no bairro de Casa Amarela quando viram o tal veículo estacionar. Dele desceram dois homens dizendo que faziam vacinação para o governo. Os garotos, desconfiados, disseram que não queriam vacina e um dos homens falou que o outro “deixasse de conversa e enfiasse a seringa no menino”. Os moleques fugiram, mas não sem antes olhar dentro do carro negro, onde estava um Papa-figo peludo, com orelhas grandes e olhos vermelhos.
Em outro episódio relatado, os ocupantes do mesmo carro preto aproximaram-se de meninos oferecendo brinquedos. Ao chegarem perto, um dos garotos percebeu manchas de sangue no chão ao lado do veículo e desconfiou. Gritou para os outros fugissem, mas era tarde demais: um dos colegas acabou sendo raptado assim mesmo.
Contado por Roberto Beltrão/ Ilustração: Fábio Rafael
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