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XIX, XXI

Foto do escritor: O Recife AssombradoO Recife Assombrado

Um momento de desequilíbrio e !, todo o café se esparramou pelo chão. Apesar de ter se posto de lado, alguns respingos voaram nos seus pés e seus olhos queimaram. Contemplou desolada a mancha espasmódica, cercada por um arquipélago doutras, diminutas. Veio-lhe à memória uma reportagem dominical sobre um lugar exótico onde o futuro é lido na borra que fica no fundo da xícara. Será que uma daquelas adivinhas que circulavam entre as mesas de um restaurante enxergaria naquela sujeira a cifra de seu destino? Cada besteira que a gente pensa. Nem sequer tirara aquela farda insípida, creme. Apenas livrara-se dos sapatos e improvisara um coque com um lápis passado ao meio. Embora não mais que justos o suficiente para delinear-lhe os contornos, a calça e o blazer atrapalharam-lhe os movimentos, sem mencionar que ficar de cócoras não era a posição mais relaxante depois de mais de uma hora de pé no ônibus – de uma das pontes do Pina, o engarrafamento dera-lhe tempo de observar o azul do céu se condensar até virar negro, sem que muitas estrelas rompessem o véu da poluição. Os botões dourados e graúdos tilintavam enquanto forcejava com o rosto vermelho, congestionado. Lá embaixo resfolegava o trânsito do bairro dos Aflitos, serpente insone de células rotativas.


Ao se erguer, além de um esperado repuxo na coluna, sentiu uma leve e mal-pressaga tontura. Precisava ir ao médico. Passara o dia com aquele gosto de fel na boca. Desvencilhando-se do blazer num rompante, como se assim se exprobrasse por não ter feito isso primeiro, retomou o ritual. Coar o café à velha maneira era um dos seus hábitos. O vapor cheiroso envolveu seu rosto como uma carícia de criança, abrandando-o. Gostava do murmúrio do líquido negro caindo garrafa térmica adentro, preso entre espelhos. Sentiu os mamilos desabrocharem sob o sutiã que a blusa fina deixava entrever e sabia sem precisar olhar que era possível reconhecer-lhes o relevo. Se ele estivesse presente, talvez os confrangesse com os dedos, eriçando-os ainda mais, ou fizesse insinuações, o que teria o mesmo efeito, e levaria ao mesmo desfecho.


Súbito a solidão deu-lhe o seu beijo gélido ali mesmo, à beira do balcão inox. Ergueu os olhos para o relógio de parede plástico, branco, redondo. Era a hora em que as famílias se congregavam ao redor da mesa. Sem razão aparente, lembrou que uma tia-bisavó tomara veneno depois que um forasteiro pelo qual se apaixonara – não havia consenso sobre ter chegado a fazer-lhe mal ou não – fugiu sozinho em lugar de raptá-la antes da meia-noite como prometera. Outra época. Hoje em dia as pessoas só se matam por elas mesmas, pensou depondo a garrafa e se dirigindo ao banheiro. Ninguém mais se matava em represália a outrem, ainda mais se o destinatário do ato pudesse nem chegar a saber. Os fundamentalistas islâmicos se explodiam na multidão sob a promessa das virgens do paraíso. Devia ser por isso que não havia homens-bomba do lado de cá do mundo. O paraíso ocidental era andrógino, de uma monotonia proverbial. Entretanto, lera no jornal que um carroceiro de vinte e poucos anos tomara chumbinho por dor de cotovelo. Fora encontrado pela manhã no barraco em que morava sozinho. Esse fugira do inferno. Ao lado havia uma notícia sobre uma artesã chamada Carmen Miranda, moradora do Alto da Felicidade, uma comunidade carente sem abastecimento d’água, que morrera num deslizamento de encosta no último temporal. Fora soterrada pela própria matéria-prima, e junto a ela, que também parecia uma estátua de barro na foto, jazia sua última peça, representando a homônima ilustre usando não os adereços de frutas e sim os de uma passista de frevo, segurando a sombrinha colorida acima da cabeça, mas com os braços e mãos naquelas disposições características, o sorriso largo, as sobrancelhas arqueadas, uma perna reta e outra flexionada, na ponta do pé.


Ao baixar a calcinha, reparando na marca profunda que deixara em sua carne, teve dois pensamentos simultâneos, um recorrente e outro inédito: estava acima do peso e havia um bom tempo nenhum homem tinha oportunidade de constatá-lo. Deparou-se com seu corpo no espelho. Era atraente. Rija, apenas generosa. Não precisava do truque de erguer os braços para que os seios parecessem firmes, embora o fato de serem de médios para pequenos contribuísse. Tudo tem um lado bom. Mesmo assim ergueu-os e olhou-se sob vários ângulos, inclinando o tronco. Acabou por dar a volta completa em si e contemplando-se por cima do ombro, descendo do vale da coluna, passando entre as covinhas no aclive das costas, até o rego dos glúteos. Duas ou três celulites, estria nenhuma. Rebolou discretamente. Quedou-se no próprio feitiço até que o pescoço doesse.


Apesar dessa autoaprovação, ao se sentar no vaso sanitário relanceou preocupada as dobras que se formaram na barriga, ouvindo quase ao mesmo tempo o tamborilar da urina, muito mais urgente que o do café na garrafa térmica. Pouco antes que um bloco compacto a abandonasse e mergulhasse sem estrondo, observou o braço quase sem pelos arrepiar-se, e então deu uma sacudidela involuntária. Há quantos meses aquele era o seu orgasmo? Antes do último namorado, masturbava-se a intervalos. Agora o sexo permanecia árido e os olhos se inundavam. Não que lhe faltassem pretendentes, palavra que soava ultrapassada. Admiradores, palavra que soava ingênua – faltam palavras. Mas eles pareciam antes cumprir uma obrigação moral que realmente cobiçá-la. Aproximavam-se mais obsequiosos que sequiosos, a boca seca de ansiedade e não de sede, quase apresentando suas condolências pelo transtorno e oferecendo como compensação a garantia de que não voltariam a importuná-la, já que ela não se interessaria por eles. Abreviado o constrangimento, retornavam abrasados pela vergonha e abraçados aos destroços de seu orgulho como náufragos de uma embarcação deliberadamente atirada contra os rochedos. Deviam ser bem mais arrojados na solitude de seus próprios banheiros, no claustro de suas imaginações harênicas. Aquele rapaz de gel no cabelo e fones de ouvido parecia enfrentar um dilema toda manhã sobre cumprimentá-la ou passar direto, mas acabava fazendo-o alternadamente, dia sim, dia não, como um reloginho, sempre de longe, sem nunca ensaiar uma aproximação. Às vezes achava que ele era meio perturbado, embora sua timidez fosse um pouco cativante. Uma vez disseram que ele foi trabalhar em pleno domingo, mas quem estava lá para saber? Quanto aos levianos, talvez a maioria, indo do pedreiro rude que berrava baixezas do alto da construção ao empresário galante que baixava o vidro para sibilar comentários sacanas, esses nem sequer mereciam sua atenção.


O que a atraía num homem era a serena ferocidade de caçador que fazia o enlace parecer o único desenlace possível. O que lhe dava calafrios era um certo sentimento fatalista de inevitabilidade que ninguém suscitara nela desde que terminara o namoro. Podia-se dizer que terminara? Ele provocara o ocaso, covarde como todos os outros. Pouco menos de um mês depois avistara-o com outra mulher, essa alta, magra, sofisticada. Teve a impressão de reconhecê-la, depois lembrou. Era uma repórter do principal canal de televisão. Um progresso e tanto para ele. Foi então que começou a tomar os remédios. O psiquiatra a advertiu sobre possíveis efeitos colaterais, como alucinações hipnagógicas, onirismo – de que até então nunca ouvira falar –, confusão, sonambulismo e até epilepsia, no caso de sobredose. Recomendara inclusive que deixasse o frasco longe da cama. Interrompera o tratamento na última consulta e dera instruções determinantes para que se livrasse: estava no limiar da dependência.


Antes de apagar a luz, contudo, chegou a entreabrir a portinhola do armarinho, mas tornou a fechá-la sem olhar para dentro. Tomar banho no escuro era outra de suas idiossincrasias. Era como se estivesse numa bica no meio da mata e a tênue cintilação que atravessava o vidro fosco da janela basculante viesse das estrelas e não da vizinhança. Quando a torrente a engolfava e os cabelos aderiam às espáduas, sentia-se concentrada, inconsútil. Às vezes elevava os braços, sem que nem assim resvalassem no chuveiro, e movia-se sinuosamente como uma serpente nadando rio acima. Desde que mantivesse os olhos fechados, a ilusão de distanciar-se era perfeita e logo estava longe, muito longe da própria vida, da própria sina.


Uma vez dançara assim para ele, sabendo que a observava impassível da mesma cama em que ela dormiria logo mais. Quando as suas coxas se tocavam, sentia nelas a umidade que minava do recôncavo, como um arroio que nasce numa gruta. Como podia ter durado tão pouco? Era a maior parte de sua vida. Mesmo o deserto de agora era mais vasto que o cipoal dos dias anteriores.


Quando tornou a acender a luz, espantou-se com o que o espelho refletia: os olhos também estavam encharcados. Como para repelir-se, abriu com violência a portinhola do armarinho, que se chocou com a parede, e deparou-se com as pílulas repousando cândidas no interior do frasco. Rodopio parado, breu ofuscante. Apoiou-se na pia, bebeu água na concha da mão livre, como quem engole seixos. Sem ânimo para tomar o próprio café, que coara antes do banho para ter a sensação de que outra pessoa lhe fizera um mimo ao encontrá-lo pronto, vestiu apenas a camisola – ele teria preferido encontrar por baixo o baluarte da calcinha – e cambaleou até a cama, apagando-se.


Acordou com o estrépito de badaladas. Não lembrava de ter deixado luz acesa. Ademais, era amarelada como a de uma lâmpada incandescente e não branca como a de suas fluorescentes econômicas. Para dizer a verdade, parecia até um pouco oscilante. Percebeu-o pela sombra do corpo estranho plantado no meio da sala: uma moça de traços semiocultados pelo redinha que pendia de seu chapéu curioso. Envergava um vestido armado que afilava-lhe a cintura e suspendia-lhe os seios de uma forma quase dolorosa, não bastasse o prolongamento artificial das nádegas que deixaria os tornozelos à mostra não fosse a extensão da saia igualmente descomunal atrás, tudo, inclusive os sapatinhos que mal surdiam, num tom azul-profundo, sereno e dramático, de tarde moribunda.


Tendo nas mãos enluvadas um terço cujas contas passava entre os dedos com a habilidade inconsciente dos inveterados, balbuciava uma oração enquanto olhava com visível ansiedade para um relógio de pêndulo ao mesmo tempo imemorial e evocativo. Acreditava tê-lo visto atirado num quarto de despejo na casa de sua avó, mas então parecia feito em ébano e o mostrador cor de papiro estava manchado, os ponteiros imóveis como lanças num antiquário. Alguém lhe dissera que uma enchente o havia encoberto no começo do século recém-passado. Havia também, então, uma trincadura que ali não se notava. O mais estranho é que mesmo agora, vendo o pêndulo irvirir na sua ronda paranoica e os ponteiros em sua corrida de Aquiles-tartaruga por trás do vidro intacto, e adivinhando mais atrás ainda uma intrincada estrutura de engrenagens, o tímido, quase submerso tique-taque que ouvia só podia ser o de seu modesto relógio, movido por duas pilhas pequenas, na parede da cozinha.


Quando o primeiro minuto da segunda metade da noite foi se extinguindo, a moça vestida de luscofusco pôs-se a andar de um lado para o outro na peça antiga com passos mais frenéticos que o voo do pêndulo, causando comoção em cada um dos seus babados e espalhando ao redor de si um rumor de asas de morcego. Num acesso, soltou um grito medonho em que lhe saíram todas as vísceras da alma e atirou o terço contra o mecanismo que de objeto de sua esperança parecia ter se tornado um artefato odioso, quase macabro. Fazendo isso, parecia também repudiar o velho credo com relação ao qual era apenas uma conta de um extenso rosário e romper o contrato segundo o qual deveria deixá-lo passar através de si para chegar às novas gerações. O crucifixo atingiu o vidro sem chegar a quebrá-lo, mas ela também não chegou a vê-lo.


Tendo fechado os olhos por instinto, ao abri-los encontrou-se numa cozinha que tinha qualquer coisa de alienígena, onde um relógio de parede branco e redondo, de material adventício, aspecto postiço, insolitamente diminuto, acabava de cruzar sem estardalhaço o marco da meia-noite. Não obstante, aquelas batidas nítidas, potentes e sonantes, bem delineadas contra o fundo do silêncio, não poderiam proceder dele; eram idênticas à do relógio que dominava a sala de sua casa. Ao ouvir um vidro delicado se quebrando, abalou na direção do ruído, envolta naquele farfalhar como se suspirasse por todos os poros, e viu uma abstrusa e claustrofóbica residência deslizar à sua volta até estacar diante de uma jovem de camisola retorcendo-se na cama como uma serpente lançada ao fogo, o rosto eclipsado pelos cabelos ainda úmidos, com exceção da boca, que espumava. No chão, além dos cacos, algumas pedras pequeninas, brancas, oblongas, iguais. Sentindo o ar lhe faltar e a vista escurecer, um gosto amargo na garganta, era como se afundasse num poço. De piche.


E como se afogar-se fosse vir à tona, deparou-se com a moça de azul-quase-negro estendida de lado num tapete, as lágrimas ainda rolando das pálpebras trêmulas como o resto do corpo, num frêmito aflitivo que se transmitia às rendas do vestido longo. A reverberante armação da anquinha parecia agora ainda mais bizarra, dir-se-ia um aleijão que a impedia de levantar-se ou um instrumento de castidade-autoflagelo imposto por um pai despótico. Marido, não conheceria. O chapéu havia rolado de sua cabeça revelando-lhe a lividez da face e o negror dos cabelos. Algumas mechas estavam embebidas na pequena poça de uma substância parda e opaca, a mesma que escorria-lhe do canto da boca, o recipiente de vidro grosso caído ao lado. Antes que a luz ou chama se apagasse, ouviu o nome de sua tia-bisavó ser invocado por vozes desfiguradas, mas não o seu.


 

Este conto faz parte do livro “Legião Anônima” de João Paulo Parisio.


Ilustrador: Celso Vinícius Sales.


João Paulo Parisio é autor dos livros: “Esculturas Fluidas” (poemas, 2015) e “Legião Anônima” (contos, 2014), ambos pela CEPE. Tem publicações em antologias e jornais literários, entre os quais o Rascunho, de Curitiba, e o Suplemento Pernambuco. Entre 2008 e 2010, idealizou e editou a revista artesanal Pensamento. Criou recentemente o blog Fábulas Árduas – fabulasarduas.blogspot.com. Já esteve entre os vencedores de alguns concursos literários, incluídos o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de Dramaturgia, o Concurso Nacional de Contos Cidade de Araçatuba, o Prêmio Cataratas e o Concurso Comemorativo do Sesquicentenário da Biblioteca Pública de Pernambuco. No Twitter, @JPParisio. Nasceu em Recife a 4 de setembro de 1982 e vive em Jaboatão dos Guararapes, também Pernambuco.


Celso Vinícius Sales é arquiteto formado pela UFPE em 2006. Obteve diversos prêmios nacionais em concursos de projeto de arquitetura. Em 2009, teve breve envolvimento com cinema, realizando o curta-metragem “16° Andar”, o qual foi exibido em alguns festivais do Estado. Como ilustrador, merece destaque seu trabalho para o projeto ”Um Cartaz Para São Paulo”, em 2012, e as ilustrações da série “Cidades Reais e Imaginárias”, publicadas semanalmente no site de arquitetura “Vitruvius”.


 

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.

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