top of page
  • Foto do escritorO Recife Assombrado

Dentro do Breu


Roberto Beltrão


Naquele começo de tarde, ficou espantando ao ver, de longe, uma mancha verde contrariar o horizonte avermelhado da caatinga. Um sítio pequeno brotando das entre os tantos galhos secos, na aba de uma montanha acinzentada. Parou o carro a alguns metros e catou a máquina fotográfica na mochila. Apontou a lente e só conseguiu bater uma foto antes que a carga da bateria acabasse. Tornou as mãos ao volante e seguiu sem pressa até a porteira às margens da estrada. Gritou ô de casa junto à cerca feita de longos cactos. Além dela, canteiros cheiros flores miúdas, arbustos de todos os formatos e tamanhos, casa branca com alpendre modesto amparada por um umbuzeiro frondoso. Foram alguns minutos até que uma mulher abrisse uma das janelas. Ele acenou com uma garrafa de plástico vazia.


– Dona, a senhora me arranja um pouco d´água?


Fechou a janela sem responder. Mas logo saiu pela porta e veio em direção à cerca. Carregava uma quartinha de barro e uma caneca de metal. Ele se fartou na água mais fresca que jamais experimentara. Ela nada falou quando recebeu de volta os objetos. Deu as costas para o desconhecido, mas não foi muito longe.


– Ei, dona, obrigado. Posso pedir mais uma coisa? Precisava de uma tomada para carregar a bateria da câmera e do celular.


– Aqui não chega luz nenhuma, moço.


– Então a senhora pode de me dizer qual a cidade mais próxima?


– É muita légua até o povoado onde vai dar essa estrada. O moço não consegue chegar lá com dia claro.


Ficaram em silêncio se mirando por alguns instantes. A morena tinha olhos cinzentos e frios, cabelos negros e ondulados que chegavam à cintura. O vestido claro deixava entrever o corpo firme. Por algum motivo, era difícil estimar a idade. Teria quase trinta ou já passara dos quarenta? O rosto impassível não dava pistas. Os lábios grossos se franziram de leve para quebrar a seca de palavras.


– Se o moço não fizer questão, aqui tem o que comer. Melhor não viajar de barriga vazia.

Ele sorriu e retirou a trava que mantinha a porteira fechada. Seguiu a anfitriã até a casa. Na sala de poucos móveis, sentou-se no tamborete junto à mesa quadrada forrada com toalha florida, enquanto ela foi à cozinha.


– Olhe, agradeço muito a bondade, viu? Como é mesmo o nome da senhora?

– Jandira. Carece do senhora, não.


– Prazer! Frederico. Fred é melhor. Sou fotógrafo, sabe? Vim do Recife pra um serviço nessas bandas. Trabalho numa revista estrangeira.


Nisso ela trouxe um prato de feijão com farinha e pedaços de bode guisado. Trouxe também uma caneca com suco de umbu e ficou encostada numa das paredes como se vigiasse o convidado. Enquanto comia, Fred contou que antes trabalhava num jornal e desistiu do emprego para aceitar a proposta da revista porque estava cansando de cobrir manifestação interrompendo trânsito, encontro de político, rebelião em presídio ou jogo de futebol. Disse que nunca tinha vindo ao Sertão e as fotos que deveria tirar eram sobre a estiagem. Jandira, olhos imóveis, parecia ouvir sem escutar.


Daí Fred se concentrou na refeição e não contou que, na busca por açudes vazios com chão rachado, carcaças de vacas mortas, pirralhos magros de pés descalços, rostos de idosas sofridas, havia se perdido nas estradas poeirentas. Não entendia de mapa e GPS, quase nunca sabia que direção tomar. Depois de comer, retomou a conversa.


– E por que, Jandira, esse teu sítio tá tão verde, tão bonito? Por aqui também falta chuva, né?


– De chuva não preciso. Esse pedaço nunca seca.


– E se não seca, ninguém quer ser seu vizinho, fazer roça, criar gado? Não vi nem fazenda por perto.


– O povo diz que a terra é suja de sangue nesse canto. Num tempo de antigamente, teve uma guerra aqui.


– E você não pensa em ir embora?


– Daqui não posso sair. Só conheço esse chão.


Dito isso, tirou o prato da mesa, voltou para a cozinha e disse que ele se espichasse na rede armada no alpendre. Fazia mal seguir viagem de bucho cheio. Arrancou os sapatos para se deitar. Mesmo à sombra das telhas, foi agasalhado pelo mormaço. Faltou vontade de apartar as moscas da testa. O enfado esmagou o peito, calou a visão. Acordou com o sol se escondendo em nuvens alaranjadas. Sentiu-se quebrado, como se houvesse carregado pedras durante o repouso. Levantou-se em meio a uma tontura. Não caiu porque Jandira o segurou.


– Tá com febre. Acontece com gente mofina, desacostumada da quentura.


– Preciso voltar para o carro. Agradeço por tudo, mas tá na hora de ir.


– Não vê que tá passando mal? Fique sereno que eu cuido de você.


Estava com as pernas bambas. Devagar, ela o levou para um quarto nos fundos e o colocou numa cadeira. No cômodo sem janelas também havia uma cama rústica e uma grande bacia de metal pousada sobre uma esteira de palha, cercada por velas grossas e brancas. Jandira acendeu as velas usando um candeeiro e saiu do quarto. Logo retornou com dois baldes de água morna e encheu a bacia, onde também colocou vários tipos de folhas. Calada, foi tirando a camiseta de Fred e fez um gesto com a cabeça para que ele se livrasse das calças e da cueca. Hesitou por mínimos segundo, mas obedeceu.


Jandira o fez sentar na bacia e passou a derramar água, a esfregar as ervas nas costas de Fred, enquanto sussurrava uma cantiga de palavras estranhas, ninar doce e preguiçoso, hálito com aroma de cravo. Molhou a cabeça dele antes de massagear entre cabelos. Com dedos precisos, também venceu os nós dos músculos do pescoço e dos ombros. De quando em quando, usava um pedaço de linho úmido para tirar o que restava de suor nos braços e no rosto barbado. Fred percebeu que, em algum momento, ela havia tirado o vestido ensopado pela água da bacia. Sentiu peitos roçando suas costas. Os braços dela vieram por trás, tocando as costelas. As mãos friccionaram ervas contra o peito cabeludo. A pele de Jandira cheirava a aconchego.


Ela riu abafado quando ele remexeu o tronco por causa cócegas que o alisado provocava. Suave como se encostara, foi desafazendo o abraço. Fred comprovou que só uma calcinha branca e larga a resguardava. Entre os seios pequenos balançavam contas do terço singelo transformado em colar. Jandira estava acocorada e quieta, olhar de onça antes do ataque. Fred cerrou pálpebras, suspirou. Veio um formigamento agradável em todas as partes. O coração ia e vinha com força. Foi coberto por um silêncio que durou séculos.

Teve um susto ao receber uma ordem de Jandira, de novo vestida, agora em pé e apontando para a cama.


– Pronto, tá feito. Se enxugue com essa toalha, se vista. Viajar agora faz medo. Amanhã você segue seu rumo. Tem um chá aqui nessa caneca. Tome que é bom pra ficar em paz.


– Olhe, Jandira, não sei como te agradecer. Mas acho que já dá pra ir embora. Não quero atrapalhar mais.


– Precisa agradecer não, nem atrapalha. Não saia. Daqui a pouco vem o breu. É noite mais fechada que as outras, acontece de vez em quando nessas bandas. Vem uma escuridão que candeeiro nenhum presta. Nem lanterna de pilha adianta. Gente de juízo não sai de casa quando tá assim. Se aquiete aí, durma, deixe a manhã chegar.


A advertência criou dobras severas no rosto da mulher. Saiu do quarto sem dar chance de mais conversa. Com um gole, Fred tomou o chá, gosto amargo, feito suco de laranja podre. Depois se recostou na cama mirando o cruzado das traves na coberta. Será que havia mesmo uma noite mais escura que as outras? Do lado de fora, piados, zumbidos, chiados recortavam o silêncio. O vento assoviava ao invadir as frestas do telhado. Passaram-se horas nessa sinfonia. Ou foram apenas uns minutos? E nada de vir o sono. O amanhecer parecia ter sido cancelado.


Mas, de um segundo para outro, o tempo calou-se. Sumiram as falas dos bichos, emudeceu a brisa. Aquilo era ainda mais incômodo que os ruídos de antes. E cadê Jandira? Levantou-se e foi olhar pela casa. Estava em canto nenhum. Abriu uma janela da sala e viu o branco do vestido desaparecendo na escuridão. Ela caminhava na estrada além da porteira. Ainda gritou Jandira, Jandira.


Podia estar metido numa encrenca. Talvez ela fora chamar alguém. Quem? Então era ficar ou fugir. Escapou pela janela mesmo e foi em direção ao carro. Quando chegou junto, percebeu estar sem a chave. Devia ter caído quando tirou as calças. Recuou com passadas largas. No meio caminho, viu uma sombra negra encobrir a casa, que se apagou misturada ao cenário noturno. Voltou-se e notou que o carro também não podia mais ser visto.


Bastou soprar um vento forte para que essa escuridão o engolisse. Andou como um cego querendo se valer do tato. Nada tocava que não fosse o vazio. Até as pedrinhas do terreno já não cutucavam os pés. Correu em todas as direções sem chegar a canto nenhum. Tudo em volta era como o fundo de um mar de escuridão. Do ar, gelado e ralo, pouco sobrava para descer aos pulmões. Berros travavam na garganta. Devia ser assim a antessala da morte. Sentou-se no chão e esperou que algo acontecesse. Ficaria ali para sempre?


Foram incontáveis batidas sem ritmo no peito, tantas gotas de desespero escorrendo na nuca, até que pontos amarelos vieram surgindo mais adiante. Pequenas chamas seguiam lentas e enfileiradas. Correu em direção a elas. Ao se aproximar, entendeu que os lumes estavam nas mãos de homens, mulheres e crianças, pessoas vestidas de preto. Não conseguia enxergar os rostos. Falou com alguns deles, mas não o encaravam ou respondiam. Nada os tirava da marcha. Sacudiu os ombros de um sujeito magro que ia com a fila. Ainda assim foi ignorado. Decidiu acompanhar a procissão.


Somaram-se vários passos para chegarem uma área aberta marcada por uma fogueira, em volta da qual a gente silenciosa ia se reunindo. Fred preferiu observar sem se aproximar. No meio do povo se destacou um homem de túnica longa e barba escura. Ele se apoiava num cajado retorcido e começou a discursar. Pouco dava para compreender. Era algo sobre o sangue dos justos e volta do rei sábio.


A fala foi cortada por estampidos e clarões. Balas zuniam sobre o terreno fazendo corpos desabarem. Entre berros e choros, mulheres tentavam proteger os filhos. Os homens do grupo puxaram armas de fogo e facões, indo de encontro aos agressores disfarçados pelas trevas. A reação era inútil e aquela gente encurralada foi sendo abatida, enquanto o líder barbudo gritava que não temessem os inimigos, que todos estavam no caminho da terra prometida.


A desorientação o paralisou. Testemunhou desespero e extermínio antes de ser tomado pelo impulso de permanecer vivo. Correu até se deparar com uma barreira de soldados de roupas antiquadas que avançavam sem deixar de disparar com suas espingardas. Desviou do batalhão e, sem alternativa, se embrenhou numa mata feita de lenhos espinhosos. Os espetos que lhe arranhavam a pele não o fizeram parar. Só foi tomar fôlego quando se achou mais uma vez num descampado. No intervalo de um piscar, viu Jandira passar ao longe.


Mas logo voltou mais forte o breu que cegava. Não havia mais tiros e gritos. O negrume o envolveu como uma segunda pele. Vencido, se deitou de lado no chão sem pedrinhas. Abraçou as pernas para aguardar o destino. O que veio foi um sono de uma tonelada.

E essa paralisia só acabou dissipada pelos raios de sol. A primeira coisa que viu foram os pés descalços de Jandira bem perto do rosto dele. Desviou o foco para o alto e percebeu a expressão de pedra na face da mulher. Ela se abaixou e colocou lhe nas mãos a chave do carro.


– Você ainda teve sorte… Isso acontece com quem despreza conselho. Gente ingrata não merece ajuda. Vá agora, pois ainda tem muito chão até a cidade.


Fred se levantou, bateu o pó grudado nas roupas, caminhou até a porteira. Antes de puxar a trava, olhou por cima do ombro. Jandira não estava mais lá. Entrou no carro às pressas e deu a partida. Os pneus acelerados fizeram subir uma onda de poeira. Conferiu a mochila que havia ficado no banco do carona: os apetrechos permaneciam ali. Observando pelo retrovisor, viu o sítio se afastado depressa na lonjura.


Horas e horas a rodar no caminho quase sem curvas. O indicador do combustível estava perto do negativo e um povoado apareceu à frente. Parou num posto de gasolina conjugado a um restaurante, logo na entrada do vilarejo. Abasteceu, estacionou e sentou numa das mesas. O garçom espremeu os olhos ao atender o forasteiro despenteado, de camiseta amarrotada, cheia de rasgões, toda suja de barro.


Fred pediu uma cerveja e perguntou por uma tomada para carregar a câmera e o celular. Esvaziava a segunda garrafa quando o garçom voltou com equipamentos prontos para serem religados. O dedo trêmulo acionou logo máquina fotográfica. Procurou entre os arquivos a última foto batida. Era apenas vegetação esturricada no sopé de uma montanha cinzenta, sem mancha verde a contrariar o horizonte avermelhado da caatinga.



 

Roberto Beltrão é jornalista. Há mais de quinze anos, pesquisa o rico imaginário pernambucano, com seus singulares mitos e lendas. Também produz contos no campo da literatura fantástica. Faz parte do quadro de fundadores do site O Recife Assombrado, do qual é um dos editores. Organizou as coletâneas “Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado” e “Malassombramentos: os arquivos secretos d’O Recife Assombrado”. É autor de “Estranhos Mistérios d’O Recife Assombrado” e “Na Escuridão das Brenhas”, todos pelas Edições Bagaço.


Celso Vinícius Sales é arquiteto formado pela UFPE em 2006. Obteve diversos prêmios nacionais em concursos de projeto de arquitetura. Em 2009, teve breve envolvimento com cinema, realizando o curta-metragem “16° Andar”, o qual foi exibido em alguns festivais do Estado. Como ilustrador, merece destaque seu trabalho para o projeto ”Um Cartaz Para São Paulo”, em 2012, e as ilustrações da série “Cidades Reais e Imaginárias”, publicadas semanalmente no site de arquitetura “Vitruvius”.


 

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.

58 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

O Paciente

A Mão

bottom of page