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  • Foto do escritorO Recife Assombrado

Maluvida (e o Monstro do Rio)


Sentada no banco de madeira estreito e sem encosto, balançava as pernas uma depois da outra, bem ligeiro. O tempo parece que não passa quando a gente está de castigo. A mãe disse vai ficar pelo menos uma hora pensando na besteira que fez. Fica calada, menina, senão demora mais ai! Era como se que fosse a manhã inteira, a tarde também, o dia todinho sem poder ser levantar. Na frente, o Rio São Francisco passava, passava, quase sem fazer dobra na superfície da água escura. Dos Anjos só podia ver rio seguir o caminho dele e balançar nas pernas. Queria gritar, apertava os lábios para ficar em silêncio. Queria dizer que foi bem feito para Seu Antônio, ele mandou descer do pé-de-manga, disse que isso não é jeito de mocinha de família, que isso é coisa de moleque, é da conta dele? Quando se virou, danei-lhe um caroço de manga na cabeça, quem mandou se meter na vida dos outros?


Dos Anjos estava acostumada a ficar sentada, de castigo, no banco estreito e sem encosto. Era jogar caroço de manga na cabeça do vizinho, era sujar de lama os lençóis pendurados no varal, era abrir a porta do galinheiro, era comer o bolo ainda quente que estava na cozinha. Parece que é menino, e menino daqueles danados, suspirava e se benzia a mãe. E olha que recebeu nome abençoado, Maria dos Anjos, imagine se não fosse batizada assim. Dos Anjos se achava meio menino quando se via no espelho. Cabelo escuro cortado baixinho, não dava para colocar uma fivela, muito menos fazer um trança. É pra não dar calor e ficar melhor de pentear, menina: quando você tiver maiorzinha, a gente deixa crescer. A pele morena dos braços roliços saindo das cavas dos vestidinhos de tecidos claros, com bordados e fitas, e sem cintura marcada. Você é fortezinha, nunca deu trabalho para comer, graças a Deus, vestido com cintura marcada só quando afinar mais, lá pros quinze anos, mas de pé descalço não ande, não, pois isso é coisa de menina desmantelada.

Ainda faltavam quatro anos para chegar aos quinze. Nadava sem chinela, subia em árvore, fazia o que desse na cabeça e depois pensava se era bom ou ruim. Não levada desaforo de ninguém, achava engraçado ver gente grande aperreada. Mainha reclamava, entrava por um ouvido, saia pelo outro. Painho fazia cara feia por causa de alguma trela, e depois sorria, piscava o olho para Dos Anjos. Era a única filha, mais nova do que Josivaldo, Jonas, Jair e Joselito. Todos moravam na casa de três quartos no sítio à beira do São Francisco, perto das Pedrinhas. Casa boa, pintada de amarelo, com janelas e um alpendre. Do lado, a mangueira, as goiabeiras, as pitangueiras, o coqueiro. Tudo cresce perto do rio, mesmo num lugar quente que nem um forno, com sol de sertão, feito Petrolina.


O pai tinha uma roça, criava galinha, um jumento com caçuas para levar o que plantava e os ovos à feira, lá na cidade. Também possuía um barco pequeno que usava para pescar cari, curimatá e surubim – esse só era fisgado em dia de sorte. Dos Anjos arregalava os olhos quando via a canoa. Fundo pintado de preto, dos lados uma faixa branca e outra azul desbotada. Só cabiam três pessoas. Para ela parecia um navio, não fazia vergonha nem diante do vapor, embarcação comprida, com coberta e cheia de cadeiras, que atravessava as pessoas de Petrolina para Juazeiro, de Juazeiro para Petrolina. Pois Painho remava, remava e conseguia atravessar, se quisesse. Ele sempre ia com alguns dos meninos à pescaria. Ela, que era a menorzinha, só ia de vez em quando. Gostava do passeio, de colocar mão na água fria enquanto o barco deslizava. Apurava bem a vista, querendo enxergar o fundo do rio, mas nunca via. É fundo demais, filha, saia da beira para não cair. O que acontece se a gente pula, Painho? No rio tem coisa boa e coisa ruim, respondia o pai. Não vê as carrancas que botam na frente dos barcos grande? É para espantar os espíritos malvados, como o que levou seu tio.


Aquilo foi há muitos anos, no tempo em que Painho era menino, e ainda escorria lágrima no rosto dele quando se lembrava. Os dois já rapazinhos, de noite, só de cueca, apostando quem nadava mais rápido para chegar a uma ilha no meio do rio. E o irmão foi ficando para trás. No escuro, começou a berrar: agarram meu pé, estão me puxando. Era brincadeira? Era nada. De longe dava pra ver o mano se esforçando para não afundar e alguém o segurava, o trazia para baixo. Até que ele calou-se e não tornou mais. O corpo não apareceu, semanas depois teve velório, missa e não teve caixão. E quem pegou ele, Painho? Foi o caboclo que vive lá embaixo, no lodo, junto os caris. Cari é peixe feioso, escuro, pele de lixa, será que o caboclo é assim também? Deixa de história, menina, não gosto nem de falar nisso. Quero você longe do rio quando estiver sozinha.


E Dos Anjos obedecia alguém? A mãe disse para ela ficar no banco, de castigo. O pai, que ela não chegasse perto do rio. Ela viu a canoa ali, marrada num toco perto da margem. Era só pular dentro, tirar o nó e passear pelo São Francisco, por que não? Mainha não estava mais olhando, voltou para a cozinha para mexer o tacho munguzá que estava no fogo. E Painho foi à feira, na cidade. A menina desceu do banco, correu, sentiu nos pés a frieza da água, subiu no barco e, usando toda a força que possuía, desfez a amarra. O barco logo foi se distanciando, levado pela correnteza. E cadê os remos? Ela espichou a vista e enxergou os remos lá longe, apoiados em pé na parede do lado da casa. E agora? Sem remo, como voltar? Dos Anjos fez beiço, pensou em gritar por ajuda, mas engoliu seco, não queria ouvir outra arenga de Mainha, nem levar palmada, é melhor ficar perdida no rio.


Sentou-se e aproveitou o passeio. Fazer o quê? Uma hora a canoa para. Via outros sítios, árvores grandes e pequenas, casinhas de porta e janela, lençóis estendidos nos varais, meninos jogavam bola, e lá longe, na estrada de barro, um caminhão levantava a poeira. Mais pra frente ela viu uma ilha pequena, na verdade um monte de pedras no meio da água. O barco foi parando e, devagarzinho, se aconchegou do lado da ilhota. Eita, estou salva ou me lasquei? Ela começou a gritar, acuda, acuda! A margem era longe e parecia que não havia ninguém lá para escutar. Quis rezar, pedir a proteção de Nossa Senhora, mas nem se lembrava da reza que Mainha ensinou.


A tarde caia, o horizonte foi ficando escuro, ela na canoa encalhada numa ilha de pedras no São Francisco, ninguém a quem pedir socorro, agora podia chorar, né? As bochechas de Dos Anjos ficaram molhadas das lágrimas que desciam, era cada gemido, cada soluço, que até os peixes fugiram assustados. Quando o sol foi embora de vez, ela engoliu o choro. O vento agora soprava gelado e fazia os cabelos dos braços ficarem em pé. A água estava calma, como se estivesse dormindo. Nela dava para ver a lua, que logo tomou conta do céu. Era como uma moeda prata sobre um corte de tecido negro. Luz embaçada daquelas que não deixa a gente perceber onde terminam as coisas e começam as sombras. Parado também ficou o tempo. Quero Mainha, quero Painho e eles não chegam, não tinham como saber onde estava a menina maluvida.


Sentada, ela encolheu as pernas e as abraçou. Que silêncio. Que frio. E do nada veio o solavanco. O barquinho estremeceu como se recebesse o empurrão de um peixe gigante vindo do fundo. Logo depois, outra pancada fez as tábuas do barco gemerem igual às velhas que choram nos velórios. Dos Anjos sentiu a voz desaparecer junto com o calafrio que subiu a espinha. Não conseguiu gritar quando a canoa foi balançada com força, feito brinquedo na mão de menino. Ela se achou menor do que era, pequena mesmo, quase nada, não veria mais Painho, nem Mainha, nem os irmãos, não ia voltar mais ao sítio, que medo é esse, meu Deus!


Escondeu a cabeça entre as pernas e começou a suspirar, cada suspiro que ia fundo da alma e voltava, meu guarde Jesus, me guarde, me acuda minha madrinha Nossa Senhora. De repente o balançado parou e voltou a reinar o silêncio. Dos anjos levantou a vista e deu de cara com a lua, redonda e branca no pretume do céu. A luz branca encandeava os olhos da menina que nem piscava, dura feito estátua, pedindo, sem falar, o fim daquele sonho mau. Se eu fechar e abrir os olhos, acordo enrolada de lençol na minha cama? Apertou os olhos e, quando tornou a abri-los, viu uma mão que saia da água e segurava a borda do barco.


Era só uma réstia em contraste com o luar, mas dava para perceber a mão de dedos finos e unhas pontudas, entre os dedos uma espécie de pele, como a que existe nos pés dos patos. A mão tateava lentamente a madeira, procurando um ponto para segurar com firmeza na parte de trás da canoa. A menina se arrastou para outro lado e pensou em pular na ilha. Antes que pudesse se bulir, a mão fez força e puxou o barquinho para longe da ilhota. Me salve, Minha Madrinha! Será que ele vai me pegar, me levar para a água escura? A mão fez força mais uma vez e empurrou o barco em direção a uma das margens.


Dos Anjos começou a choramingar, enrolada nela mesma, que nem gato dormindo. A canoa foi se encostando suavemente na areia da margem e parou de vez. A menina permaneceu ali, sem se mexer, chorando baixinho. Demorou a levantar a cabeça. Viu de novo a lua, que agora estava bem menor, um ponto quase sem brilho na coberta da noite. O vento frio mudou para uma brisa morna. Tudo parecia calmo de novo. Ela espichou o pescoço, depois se ergueu e foi caminhando, passos cuidadosos, até o outro lado da canoa para ter a certeza de que o bicho papão, o caboclo, a assombração, ou o que fosse, tinha ido embora.

Respirou fundo, encheu o pulmão de alívio, quando não enxergou mais nada se mexendo no rio. Mas, quando se virou para escapulir, percebeu que ele estava ali, em pé junto do barco. Era alto, maior do que Painho, maior que qualquer outro homem. A pele era escura, sim, parecia mesmo o couro de um cari. Braços longos e fortes com aquelas mãos esquisitas. Não tinha roupa, e não era gente. Dava para ver bem a cabeça redonda, sem cabelo e com orelhas pontudas. A boca era uma linha, se abria e se fechava sem parar como a boca de um peixe quando é tirado da água. Dela saiu uma gargalhada rouca. Os olhos grandes e bem abertos faiscavam, tochas acesas na noite.


A menina ficou com as pernas moles, sem força para se mexer, sentiu uma tremedeira, um arrepio de morte chegando, ai meu Deus leve agora, acabe logo com isso! O bicho estendeu os braços e abriu a boca estreita e cheia de dentes brancos, pequenos e afiados. Soltou outro grunido, mistura de risada com gargarejo. O bafo era podre, dava nojo, vontade de vomitar. As mãos de unhas pontudas foram chegando cada vez mais perto, quando ela ouviu um grito lá longe:


– Dos Anjos, Dos Anjos, apareça, minha filha, onde você se meteu?


Era voz grossa de Painho! A força voltou às pernas da menina e a tremedeira parou. Que nem moleque sabido quando joga bola, ela deu um drible no monstrengo e pulou do barco para a areia. Ainda sentiu as garras arranharem seu ombro, mas meteu sebo nas canelas. Correu desesperada e nem se importou com as pedrinhas machucando os pés descalços. Viu o pai montado no jegue e, ligeiro, pulou na garupa.


– Corre, Painho, que o caboclo quer me pegar!


Painho de uma tabicada no jumento e saíram em disparada. Olhando para trás, ainda enxergaram o vulto do malassombro voltando às águas escuras do São Francisco.

Em casa, Mainha nem reclamou, nem fez cara feia. Só chorava enquanto limpava os arranhões nas costas da filha com um pano cheio de álcool.


A partir daquela noite, Dos Anjos foi outra. Sim senhor, sim senhora, nada de subir em árvore, muito menos de sacudir caroço de manga, pés sempre nas chinelas, vestidinho sempre limpo, deveres da escola feitos com letra caprichada, Ave Maria dita em voz alta na hora de dormir. Passaram-se os anos, e Maria dos Anjos virou professora, casou-se, veio morar no Centro de Petrolina, teve três filhos. Quando eles estão malcriados, ela sempre os acalma contando a história de como quase foi devorada pelo Nêgo Dágua.


Dizem os ribeirinhos do São Francisco que o Nêgo Dágua gosta balançar os barcos, tirar os peixes dos anzóis, partir as linhas, furar as redes. Também tem a mania feia de carregar as crianças que tomam banho longe das margens. Às vezes é visto mesmo de dia, corpo escuro espichado nas pedras do meio do rio, tomando sol. Não há quem explique de onde ele veio, mas todo mundo por lá sabe que o caboclo mora nas profundezas do Velho Chico. Os pescadores se previnem: oferecem cachaça ao Nêgo Dágua para que ele não vire a jangada ou a canoa. Para ficar amigo dele é preciso cortar uma de suas garras. E quem tem coragem de fazer isso?


 

Autor: Roberto Beltrão. Ilustrador: Osman Frazão.


Este conto integra o livro “Na Escuridão das Brenhas” (Edições Bagaço) de Roberto Beltrão.


O livro pode ser adquirido aqui.


Roberto Beltrão é jornalista. Há mais de quinze anos, pesquisa o rico imaginário pernambucano, com seus singulares mitos e lendas. Também produz contos no campo da literatura fantástica. Faz parte do quadro de fundadores do site O Recife Assombrado, do qual é um dos editores. Organizou as coletâneas “Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado” e “Malassombramentos: os arquivos secretos d’O Recife Assombrado”. É autor de “Estranhos Mistérios d’O Recife Assombrado” e “Na Escuridão das Brenhas”, todos pelas Edições Bagaço.


Osman Frazão (PL45T1C0) ilustrador, escultor, graffiti artist, fez parte do coletivo Subgraf na década de 90.


 

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.

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