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  • Foto do escritorO Recife Assombrado

A senhora tem permissão para entrar aqui?

Atualizado: 1 de nov. de 2022


Autor: Paulo Caldas


A porta entreaberta incita a curiosidade de Morgana. As coisas que contemplava do corredor, mesmo que na penumbra, deslumbravam os olhos inquisidores. A grande mesa oval de madeira escura, a passadeira estirada sob a sopeira de porcelana oriental posta sobre o mármore de carrara. Que cenário deslumbrante. Cadeiras de espaldar alto, de ébano, talvez, assento e encosto de palhinha marfim. O piso de assoalho em tábuas de brilho farto se estendia ao ambiente até ser encoberto pela penumbra.

Os cristais dos lustres presos ao teto assumiam matizes tom sobre tom: róseas, lilás, violetas, ao refletir o lume tênue dos poucos apliques acesos. Quadros em óleo sobre tela, figuras desconhecidas, trouxe ânsia de vê-los de perto, decifrar personagens tão formais, um por um. Vou entrar.


A sensação de solitude fez com que cedesse aos impulsos. Mais uma olhada para a porta do corredor foi o suficiente, o silêncio virou senha de acesso. Visconde de Tamataupe, barão de Tamboatá, baronesa do Serro Azul. Quem será este? A legenda ao pé da moldura está em branco. Sei lá. Vou ver o que tem no primeiro andar. Resoluta, venceu cada degrau com passos decididos. Apenas um abajur dava tímida claridade ao cenário.

Marquesão, poltronas estofadas em padrões florais, cortinas em tecido sóbrio ocultavam janelões voltados para o jardim, ocultando a beleza da fonte luminosa. Apoios em forma de colunas gregas suportavam jarras de porcelana chinesa, estatuetas em bronze. Nas paredes opostas às janelas, a pintura comum dava lugar ao revestimento ou papel acetinado. Na parte lateral, apenas uma foto. Uma mulher de meia idade, cabelos presos com marrafas de madrepérolas, rosto oval, olhos escuros, nariz e lábios finos postos sobre a pele alva. Colo desnudo pelo decote ousado. No pescoço, um colar de couro com pedrinhas brilhosas, tal os que se vendem nos dias de hoje nas feiras de artesanato.

Por um momento Morgana teve a reiterada impressão que a senhora da foto lhe sorria. Só pode ser impressão, muitos sentem isso ante a Monalisa. Mas, o medo lhe deteve o ímpeto. No meio da escada, com passos inseguros, é contida.

A senhora tem permissão para entrar aqui? Não. Por favor, queira me acompanhar à sala da secretaria.

Como se tivesse cometido algum pecado, olhos de culpa fixos no preto e marfim do assoalho, em silêncio, limitou-se a seguir os passos severos do vigilante.

Com licença, dona Marta, encontrei esta senhora no Salão dos Ancestrais. Desculpe senhora, fui seduzida pela beleza do lugar. Entrei aqui na Academia de Letras apenas para tomar informações sobre os saraus das quintas-feiras. Mas, compreenda, a porta da galeria estava aberta e não resisti. Desculpe a ousadia. Meu nome é Morgana, sou amante da literatura, espero não ter causado transtorno.

Não leve a mal, minha querida. Sou Marta Carneiro Vilela, secretária da casa. Qualquer pessoa de bom gosto se encanta com nosso acervo. Mas permita uma pergunta, você tem certeza que a porta estava aberta?

Sim, senhora Marta, como poderia ter entrado?

O senhor pode explicar isso, senhor João de Deus?

A porta estava fechada, dona Marta, a chave está aí na sua gaveta. Não sei como foi possível, mas ela entrou na área reservada.

Desculpe mais uma vez, mas fiquei fascinada pelo retrato daquela senhora de cabelos prateados.

– Ah! A marquesa Morgana Cavalcanti de Albuquerque.

– Que coincidência. Temos o mesmo nome. Engraçado, no quadro ela usava um colar igual a este meu.

– Mas você não traz colar ao pescoço, Morgana.


 

Paulo Caldas iniciou a carreira nos anos 80 quando lançou a primeira versão de No tempo do nosso tempo, uma volta aos anos 60, em parceria com o cronista Evaldo Donato. Em seguida, lançou Anatomia do baixa renda (crônicas) e daí nove títulos para o publico infantil. A partir de 1995, iniciou textos para adolescentes, com as novelas Flores para Cecília, As fasces do escorpião, A cor da pele e O sol além da minha rua. A partir de 2005, alcançou o público adulto com O anjo chamado Alegria, A lua em sagitário, Sob um céu de domingo e com o romance Porto dos amantes (2012), que recebeu menção honrosa da Academia Pernambucana de Letras. Participou de diversas coletâneas de prosa e poesia. Seguidor do mestre Raimundo Carrero, ministrou oficinas de técnica literária na Bienal do Livro, Fliporto e na Fundarpe, por cidades do interior. Atualmente conduz a Oficina Literária que leva seu nome, no Clube Alemão de Pernambuco.


Imagem: Variação do quadro “Dama com unicórnio” (1505–1506) do pintor renascentista Rafael Sanzio

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