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  • Foto do escritorO Recife Assombrado

Ao Chamado do Mar

Um conto impregnado de mistério, violência e horror. Por Thiago Medeiros.

À entrada de Angelim, Seu Chico desperta com o ladrar ensandecido dos dois cachorros que cria no sítio. Faz uma ronda em redor da casa e, não vendo nada que motivasse aqueles latidos, ordena que os cães calem-se. Continuam ladrando, saltando sobre a porta do canil. Irritado, tira o cinto das calças e esbraveja que vai calar os dois na marra. Ao erguer o punho, congela o movimento ao se deparar com a imagem que vê na porteira do sítio. Uma matilha imensa, todos os cães da cidade, rosnando para ele. Assustado, abre a porta do canil e observa os dois cachorros se juntando ao grupo e partindo em debandada.


Em Canhotinho, na bodega do Paulista, Paraguai tomba à saída, trocando os pés no típico atropelo dos embriagados. Ao ouvir o uivo e ver uma matilha de cães da rua em disparada, levanta-se num salto, sentindo a sobriedade retornar num soco. Por reflexo, procura o revólver na cintura. Não o encontrando, recorda que na noite passada o mesmo lhe foi tirado por um cabo da polícia metido a cavalo do cão. Desesperado, correu para casa, aos berros de corre, todo mundo, tem alguém correndo bicho.


Quem ouviu o alarme, apressou-se em pôr à frente de casa a cruz de madeira enrolada numa folha de palmeira abençoada na missa de domingo de ramos. Na casa de Pedro Barbeiro, o mesmo discutia com a esposa, Dona Janice, qual dos dois sairia para pendurar o amuleto. Discutiriam por toda noite e o crucifixo continuaria escondido no guarda-roupa.


No sítio Água Branca, Pedro Ferraz terminava de serrar o cabo de uma peixeira. O polegar fechado sobre o fim do cabo facilita o manuseio. A face ainda queima, doía-lhe até mesmo o bater do vento no rosto. A esposa, Dona Imaculada, entra na casa. Mesmo naquela escuridão, Pedro Ferraz adivinha-lhe os hematomas no rosto. Sorri. Questiona se a mulher colocou o amuleto na porta. A mulher tenta olhar mais uma vez para a face deformada do marido, suspira e assente em silêncio. Já no quarto, retira a cruz de baixo da saia e destrói a folha seca que a envolve, atirando o crucifixo pela janela.


Não muito longe dali, a matilha acompanha uma sombra veloz, rápida ao ponto de não ouvir mais o vento que antes a ensurdecia. Vez por outra, para e vira o rosto para o leste. Ouve o som de águas, num terno chiado ininterrupto, e o cheiro de sal. Nunca vira o mar. Mas torna as vistas em direção ao sítio Água Branca e volta a correr. Sente o peito arfar, um calor absurdo a invadir os membro que crescem, tornando-se cada vez mais rijos. Sente florescer da pele, tal qual a terra que permite que lhe cresçam as relvas nos meses de chuva, pêlos escuros, cada vez mais densos, nascidos do suor que lhe rega a carne. Sorri. Sou uma sombra, sou uma sombra. Tenta gritar o próprio nome. E toda aquela região ouvia o uivo dilacerar-lhe o peito.


Diante da porta do sítio, a sombra para. Aguarda o restante da matilha chegar e então rosna. Todos os cães latiam, numa febre cega. Avança e estraçalha a porta num único golpe. Pedro Ferraz salta da cadeira com a peixeira em punho. Diz, num sorriso ensandecido, ainda há tempo para perdoar. A sombra tenta responder que o tempo do perdão acabou, mas apenas late, grunhe, rosna, uiva. Saltam um sobre o outro. O homem se desvia das garras e crava a peixeira nas costas da besta. Ela gira os braço, atirando-o para longe, deixando a arma fixada nas costas. Salta por sobre o homem que berra ao tentar lhe agarrar o pescoço. Desvia-se e enfia as garras no centro do peito. Rosna e tenta gritar por sangue, mas apenas uiva. Prossegue com o movimento das mãos e atravessa o peito, arrancando entre os dedos um coração ainda pulsante. Pedro Ferraz ainda sussurra, desgraçada, desgraçada. Por trás de si, ouve a voz da mãe a dizer-lhe, chega, Heloísa, acabou. Indiferente à escuridão, volta o rosto para Dona Imaculada e identifica os hematomas no rosto. Enfurecida, volta para o pai, e num movimento das garras, arranca-lhe a cabeça.


Sai para o terreiro. O coração, ainda quente, na mão esquerda. A cabeça, puxada pelos cabelos, na direita. Levanta-a e encara os olhos vazios, cheios de nada. Que vergonha, morrer com essa cara de susto, pensa. Uiva. Os cães respondem. Atira a cabeça no meio da matilha, e os cachorros disputam entre mordidas um naco de carne. Volta a olhar para a mãe, que apenas diz, vá, Heloísa, corra, vá para longe.


Mais uma vez obedece. Da mesma forma que obedeceu uma noite antes. Passava as roupas à ferro, quando o pai chegara bêbado. Parou na soleira da porta com os olhos brilhando de luxúria e a boca contorcida num sorriso escancarado e amarelo. Belas pernas a minha filha tem, belas pernas. Sorria, gargalhava. Desabotoa a camisa, abre o cinto e o zíper da calça e salta sobre Heloísa. Seriam mais belas em meus dentes, berrava entre gargalhadas, enquanto tentava forçar a queda das saias da garota que lutava desvencilhar-se. Aproveitando-se da embriaguez paterna, consegue agarrar o ferro quente e acertá-lo no rosto. O homem uiva de dor, esbravejando palavrões, chamando-a de vagabunda. Heloísa corre para fora da casa, as vestes rasgadas, os pulsos arroxeados, quando vê a mãe que já chegava correndo para ver o que ocorria. Ao ver a filha naquele estado, a mãe apenas disse, vá, minha filha, corra para bem longe daqui. E correu. Correu até não ouvir mais o vento e os gritos do pai.


Desperta sobre a terra de pasto seco. Não compreende como não sentira frio durante a noite até ver-se envolta num manto de borboletas. Ao mover-se, observa o caleidoscópio esvoaçante despertar e partir para longe. Dá-se então conta da própria nudez. Ainda sente nas mão a vida alheia pulsante, mas não encontra nada entre os dedos. Ao lado, uma peixeira ensanguentada. Passa as mãos nas costas e não encontra ferimento algum. Um pouco mais adiante, a matilha interminável de cães que adormece. Passa a língua nos lábios e sente o sabor do sangue coagulado. Gostaria de se ver como estava, envolta num lençol de sangue seco. Tudo foi real. Deita mais uma vez sorrindo. Sorri até gargalhar, certa que estava que na próxima lua cheia correrá para o leste, até não ouvir o vento, atendendo a um chamado do mar.


 

Autor: Thiago Medeiros. Ilustrador: Celso Vinícius Sales.


Thiago Medeiros é natural de Caruaru, Pernambuco. Recebeu menção honrosa no 3º Prêmio Pernambuco de Literatura (2015). Atualmente prepara seu primeiro livro.


Celso Vinícius Sales é arquiteto formado pela UFPE em 2006. Obteve diversos prêmios nacionais em concursos de projeto de arquitetura. Em 2009, teve breve envolvimento com cinema, realizando o curta-metragem “16° Andar”, o qual foi exibido em alguns festivais do Estado. Como ilustrador, merece destaque seu trabalho para o projeto ”Um Cartaz Para São Paulo”, em 2012, e as ilustrações da série “Cidades Reais e Imaginárias”, publicadas semanalmente no site de arquitetura “Vitruvius”.


 

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.

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