Como é viver em um casarão mal-assombrado? Rômulo César Melo nos mostra neste conto surpreendente.

Parecia um dia igual a todos os outros na vida de Tomé. Acordou na imensidão daquele sobrado secular, escovou os dentes e tomou café em silêncio. Morava sozinho desde a morte da avó, a última referência dos antepassados. A família que conheceu começou a se esfacelar com o desaparecimento de Vovô Arnóbio, quando Tomé estava de férias na fazenda de um amigo. Um verdadeiro mistério. Apesar de menino, percebia que o velho saía de casa pela manhã, nos finais de semana, e só voltava no meio da tarde com um cheiro forte de perfume; entrava no quarto. Discretamente, a esposa seguia atrás e fechava a porta, dava para ouvir os gritos e reclamações. Assim tá insuportável, Arnóbio, vou terminar tendo de trancá-lo dentro de casa, não aguento mais, a vida toda assim. Você está velho, homem, um velho farrista, ora veja se pode, tome vergonha na cara. Tô velho, mas num tô morto. Vou terminar te internando num asilo. Afora os finais de semana, os avós eram um casal feliz.
Na delegacia, a avó estava bastante emocionada. Contou à polícia que o marido, embora ainda fosse forte, começara a entrar num processo de esclerose. Naquela manhã, amanheceu disposto, dispensou o pedreiro e estava terminando de fechar uma parede com cimento, casa velha tem infiltrações, sabe como é, doutor. Depois, saiu para alimentar os pombos na praça, como de costume; nunca mais voltou. E, desde aquele dia, os sacos de cimento e a pá permaneceram ao lado da parede, a última lembrança do velho, ninguém poderia mexer ali, parede cultuada como se fosse um túmulo, até flores eram penduradas feito quadros. Quando a noite chegava, ela sentava na cadeira de balanço, com os ombros cobertos por uma manta de lã, parecia esperar a volta do esposo, esperou tanto até que um dia não mais acordou.
Depois do enterro, o neto confirmou a vocação de viver sozinho. E assim os dias foram passando, os meses, ao lado de cinco gatos e dois cães, que tinham a incumbência de evitar a aproximação dos outros, nem o carteiro conseguia entregar as cartas. Aquela casa assustava os vizinhos, falavam em malassombros, barulhos estranhos. Ficava de lado para a rua como se evitasse a incidência direta do sol, o portão enferrujado, formado por grades que mais lembravam lanças apontando para o alto, ameaçadoras. A fachada e a parede de um branco descascado, a caliça da umidade, as janelas do porão, que davam para a calçada, protegidas, também, por grades, parecia uma prisão; ou um cemitério.
Tomé escolheu o isolamento, porque nada havia a ser dito, afinal, as poucas pessoas de que gostava estavam debaixo da terra. De tanto ouvir ninguém, o silêncio se tornou essencial, principalmente depois da aposentadoria por invalidez, que o afastou do convívio com os colegas de repartição. Gostava mesmo de ficar esparramado no sofá, coçando, como dizia, assistindo a filmes de terror, lendo os contos de Poe, admitia os latidos e miados dos bichos de estimação, insuportável era apenas a voz humana.
Foi quando decidiu visitar o túmulo da avó naquele dia de Finados. Há dois anos não punha os pés no cemitério, na verdade, só esteve por lá no enterro. Fez questão de comprar um ramalhete de flores do campo, o maior, onde uma mulher de lenço atendia no balcão. Na loja, com ambiente sombrio, sentia calafrios como se abrissem uma janela ao inverno. Nas paredes fotos de uma jovem de cabelos pretos, ladeada por algumas velas acesas, uma moça bem parecida com a dona da floricultura, só que mais nova. Vovó merece o buquê mais vistoso, seis rosas por cada ano de ausência, precisava se desculpar.
Ao ver a confusão das pessoas tentando entrar, filas e filas defronte ao portão de grades de ferro pontiagudas, começou a suar, o coração palpitando, aquele mar de gente, flores, o cheiro das velas acesas, pensou que ia morrer, nada mais sugestivo, morrer no portão principal do cemitério, dali à cova alguns metros; não conseguiu entrar e voltou para o sobrado com o ramalhete debaixo do braço; abriu o portão, que bateu sozinho atrás dele como se alguém o empurrasse com raiva. Pôs as flores num jarro de porcelana sobre a mesa de jantar. Ficou lindo, muito melhor do que numa sepultura. A janela bateu trincando o vidro. O vento hoje tá forte pra caralho.
Pegou o pote de sorvete, ligou a televisão, assistiu, por um punhado de minutos, veio o sono. Pensou ter ouvido um choro, bem abafado, como se alguém tapasse a boca para impedir um outro de chorar. Achou que era no filme, mas havia desligado a TV. Impressão, impressão, estou com sono, uma mera impressão. Deitado na cama, por via das dúvidas com a luz do banheiro acesa, a porta do quarto, que dava para a sala, aberta, os olhos fechados, fez uma prece fervorosa em intenção da avó.
O silêncio somente quebrado pelos grilos, um e outro carro passando na rua, os latidos dos dobermanns no jardim, naquela fase da vigília, quando nem se dorme nem se está desperto. Escutou um barulho de vidro quebrado vindo da cozinha, depois um riso de criança. Deu um pulo, seguiu acendendo todas as lâmpadas, quem será que invadiu a casa? Estou armado, digo logo, melhor sair de mãos para cima, porra pequeno. No chão da cozinha, estilhaços do copo em que bebeu leite. Revistou os ambientes do sobrado atrás do capetinha zombeteiro, como passou pelos cachorros? Como pode ter entrado com as janelas e porta fechadas? Teve receio de ir ao porão. Ali num entro nem morto.
Nada ou ninguém encontrado. Ah, meu Deus, outra impressão, acho que foi essa ida ao cemitério misturada com o sorvete, me fez mal. Ouviu o barulho da cadeira de balanço. Suava, suava. Tomou um ansiolítico e o antidepressivo assim que sentiu o coração descompassado. Deitou, dormiu. No sonho, via uma jovem, toda de branco, flutuava defronte à janela do quarto, os cabelos longos escuros, um cheiro de flor do campo, o braço estirado com a mão espalmada como quem pede algo. Ela abriu a boca, falou baixinho. Tomé fez esforço na tentativa de entender e ao ouvir a palavra flores, acordou com o nariz coçando.
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Estou ficando louco, só pode.
Depois de uma semana de copos e jarros quebrados na calada da noite, regados a risadas de menino, repetidos sonhos com a jovem que precisava de flores do campo, ranger de cadeiras e choros abafados, precisava fazer alguma coisa. Quando, com surpresa, recebeu a visita do padre Gleisson, amigo de infância, já perto do Natal, estava bastante abatido. As calças amarradas por um cordão, os cintos nem davam vencimento, a barba mal feita, vidros de remédio espalhados pelo quarto, já não aguentava o barulho ensurdecedor das vozes, uma multidão, choros, lamentos, o cheiro de flor, desejava a solidão de volta. Há uma semana abandonara o psiquiatra, continuava tomando banhos de descarrego, visitava o terreiro nas sextas.
O vigário e aquele papo saudoso de quem não vemos há tempo. Padre Gleisson, que foi um estudioso do exorcismo, estranhou a escuridão da casa, minimizada por velas acesas, dezenas espalhadas de canto a canto e o cigarro na boca de Tomé. Que é isso, rapaz, deu para fumar? Fumando, bebendo, me entupindo de medicamento tarja preta e ouvindo assombração. Tenha calma, deixe de misticismo, existe nada disso, ninguém voltou do túmulo para contar a história, é coisa para literatura fantástica ou cinema, essa falácia de “I see dead people”. Precisa se apegar mais a Deus, frequentar a missa. Esses sonhos e impressões vão acabar. Pare de ler livros de gente morta e assistir a esses filmes de demônio vomitando verde e girando cabeça, pura ficção. Por favor, não me fale em impressão, padre, o que tenho sofrido pode ser tudo menos impressão. Por que as luzes apagadas? Tenho medo de ver o que ouço, ando com uma lanterna que ilumina o necessário, mais ainda depois de escutar apitos, relinchos de cavalos, gargalhadas. E as velas? As velas são pedidos que escuto, querem luz, querem velas acesas, daí acendo, bem vou ser doido de contrariar? A situação está piorando. Estou doente, ficando mais doido ainda.
Calma, Tomé. Sirva-nos um café e vamos conversar, de preferência com as luzes acesas, nada a temer, confie em mim. Esse povo inventa demais, dizem que o sobrado é assombrado e você cai nessa. Lembre-se do seu xará na Bíblia, ver para crer. Sem ver, nada há de verdade, exceto a impressão do que não existe. Bote uma coisa na sua cabeça: somente os mortos podem ver os mortos. Ao acender a luz, o padre não conteve o grito. O que foi? Vá fazer o café, vá. O que foi, viu algo? Não minta para mim, amigo. Nada, nada, vá passar o café, vá. Impressão minha ou acabei de ver um menino escurinho correndo pela sala, tocando nas coisas de vidro?, pensou o vigário. Fechou os olhos, rezou, e ao abrir de volta se benzeu por três vezes, quando percebeu uma jovem de cabelos longos que flutuava do lado de fora da janela, olhando fixamente para o jarro de flores do campo, que, desde o último Finados, era trocado toda sexta-feira.
O padre cerrou os olhos mais uma vez, os braços arrepiados, rezava para que o amigo trouxesse o café. Viu, na cadeira de balanço, uma velha de cabelos brancos presos num coque, com uma manta azul sobre os ombros, segurava uma pá enquanto se balançava. Sobre o colo, um saco vazio de cimento. Parecia não ver o padre, nada falou, olhava para a parede de tijolos de onde saía um braço engelhado e magro, o cheiro de cerveja e perfume barato, um choro abafado podia ser ouvido, por certo alguém queria sair detrás da parede, emparadedado? Quando Tomé chegou com o café, não havia ninguém na sala, pelo menos ninguém que fosse possível ver somente com os olhos. Poxa, o padre foi embora sem se despedir? E ficou, mais uma vez, sozinho. Acompanhado de uma multidão de sombras.
Autor: Rômulo César Melo. Ilustrador: Celso Vinícius Sales.
Rômulo César Melo é natural do Recife. Tem dois livros de contos publicados: Minimalidades (Ed. Bagaço/2013) e Dois Nós na Gravata (Ed. Cepe/2015). Com este último foi vencedor do II Prêmio Pernambuco de Literatura 2014.
Celso Vinícius Sales é arquiteto formado pela UFPE em 2006. Obteve diversos prêmios nacionais em concursos de projeto de arquitetura. Em 2009, teve breve envolvimento com cinema, realizando o curta-metragem “16° Andar”, o qual foi exibido em alguns festivais do Estado. Como ilustrador, merece destaque seu trabalho para o projeto ”Um Cartaz Para São Paulo”, em 2012, e as ilustrações da série “Cidades Reais e Imaginárias”, publicadas semanalmente no site de arquitetura “Vitruvius”.
Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.
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