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  • Foto do escritorO Recife Assombrado

O Segredo dos Irmãos Escarião

João Paulo Parisio


Com agradecimentos a três Fernandos: Fernando Roberto, meu pai, Jorge Fernando e Maria Fernanda, colegas de trabalho, pelos relatos que me fizeram e entrelacei neste conto.

Todo final de ano Lupercínio Escarião fechava as portas da casa-grande e deixava o engenho ainda embalsamado em sereno e neblina. Pegava o trem para uma viagem que se arrastaria pelo dia inteiro, embora seis décadas depois se faça de carro em uma hora. Uma vez no Recife, instalava-se na casa dos sogros, na Gervásio Pires, com pouco exagero um palacete. Do alto via-se a multidão de copas e sobrados, as igrejas vigiando a aproximação do diabo em todas as direções. Em certos trechos, ainda era possível descortinar pedaços de rio e pântano, noutros, a visão já era barrada por edifícios vertiginosos.


Para seus onze filhos, a região dos arranha-céus era apenas onde a mãe comprava os cortes de tecido com que seriam feitas as roupas das festas e as que usariam ao longo de todo o ano seguinte, quando, qual aves migratórias, retornariam ao delta do Capibaribe para uma nova temporada de engorda e troca de plumagem. Ali, porém, ficavam entediados e piongos, sangues-de-boi na gaiola. Nada de banho de rio, de pescaria em açude, de andar a cavalo no couro, de passarinhar com baleadeiras, de armar arapucas, de catar murici na mata, de fornicar até com touceiras de banana, que soltam um visgo, e com o barro fresco das margens dos cursos d’água, depois de ter modelado buraquinhos com o dedo, nada de improvisar asas com folhas das mesmas bananeiras e pular de barrancos, estabacando-se lá embaixo, de botar besouros hercúleos para puxar miniaturas de carroças como se fossem bois, de improvisar bonecos enfiando gravetos em cajus, a castanha cabeça, de acostumar rolinhas a vir comer na palma da mão.


Ali, não. O único território de peraltices, o quintal ao fundo. Que era amplo, sombroso e cheio de fruteiras antigas era. O maior frequentador dessas últimas vinha a ser Felisberto, não por gostar mais de frutas, e sim por sua habilidade superior em alcançá-las, inclusive galgando o muro para pegar jambos do vizinho. O mais franzino e tímido, o pai recorria a ele quando os demais caíam em contradição. Nunca o apanhara em mentira, mesmo que a verdade implicasse sangrar pelos poros. “Esse menino vai ser padre”, diziam amigos que ignoravam seus pendores acrobáticos e ladinos. Igual aos demais, ele gostaria de explorar o intrincado de ruas da quase lendária capital, mas a mãe não permitia, advertia-os contra o mal cuja simples menção causava-lhes calafrios.


Proibir, entretanto, é esporear o cavalo da desobediência. Uma ocasião em que aquela última demorou a voltar de uma visita a certa comadre a fim de apresentar-lhe as três filhas, os oito meninos pularam o portão e ganharam o mundo. Andaram ao léu por aí, cruzaram duas pontes, viram bondes, automóveis, perderam-se, depararam-se com um terreno úmido, alagado em certos pontos, remanescente dos interstícios entre os braços da antiga estrela-do-mar que a cidade desenhava no mapa, e que agora transformava-se em amorfo, túmido tumor. Era pródigo em fruteiras e tinha um feitiço de oásis que os atraiu. Empanturraram-se, armazenaram frutas nos bolsos. Viram sapos, girinos, zigue-zagues, sanguessugas, caranguejos, socós, garças, famélicos cavalos. Era o mais próximo das peripécias de engenho que podiam ter no exílio. Num trecho em que se formara uma lagoa, vislumbraram o que pareciam ser duas flores que desabrochavam debaixo d’água, depois viraram fadas com véus deslumbrantes. Súbito atracaram-se, arrancando-se pedaços a dentadas, não só do tecido. Eram, afinal, peixes de barbatanas descomunais com cores de fogo, crepúsculo e sonho. Sua luta, um espetáculo transitório como costumam ser esses três entes. Em pouco, um virou de barriga para cima e boiou, com algo agora de toureador trucidado em plena arena, um cadáver chamejante à luz oblíqua. Os meninos, alvoroçados de cobiça e amor nascente, começaram a discutir sobre o meio de capturar o vencedor, imaginando armadilhas não-letais e procurando um coco que servisse de opaco aquário. Ainda debatiam quando uma figura humana surgiu do mato, e só aí deram-se conta do quanto a tarde avançara.


O homem se aproximou a passos tranquilos e largos. Embora velho, era um preto ainda forte, enervado, o que se podia notar pelo tronco nu e tanto que carregava um saco cheio. Agarrado a seus cabelos, um macaco-prego. Os meninos se entreolharam, lendo a mesma ideia uns nos semblantes dos outros, embora o macaco lembrasse mais as estórias das Mil e Uma Noites que o sinistro fabulário local, e os mundos que evocavam soassem incompatíveis. Tiveram todos o impulso de sair correndo, mas refrearam-no pelo mesmo motivo: o orgulho de cada um perante os demais, o receio da vergonha de fugir sozinho enquanto os outros fincavam pé, heroicos.


– Nos tempo de eu menino num tinha desse peixe aqui não, meus galego. – interpelou-os o preto, chegando. A voz era por assim dizer acústica, voz boa de fazer eco.

– E de onde eles vieram? – perguntou, pondo-se à frente do grupo, Hildebrando, que sonhava ser remador do Náutico e já praticava no Una e nos açudes da propriedade.

– Do outro lado do mundo. Da Cochinchina, do Ceilão, um lugar desses. – e o velho fez um gesto vago, adejando a mão para o lado do mar, estimando incomensuráveis lonjuras.

Acrescentado à exuberância do aspecto e comportamento, o exotismo da origem daquele peixe inqualificável atirou mais lenha na fogueira do desejo dos irmãos.

– Do outro lado do mundo fica o Japão. – afiançou Afonsino, com autoridade.

– Então foi quase. Agora tem uma coisa: esse peixe só se cria em terra encantada.

– E como é que tá aqui? – questionou Gumercindo.

– Pro mó de voismicezinho. Todo lugar onde tem mais de sete menino se encanta. Espie: o mundo inteiro é encantado ainda, o encanto não se perde, os home é que perdem o encanto.


Espantavam-se da conversa daquele velho. Parecia cada vez mais, também, um personagem das Arábias, até porque era fato pacífico que por lá havia negros, meditou Afonsino. Seria o preto velho ele próprio encantado, pra estar com aquela conversa de encantamento? Se sim, podia ser um demônio, ou um gênio. Era preciso acautelar-se.


– O senhor também é encantado? – perguntou num arroubo de ousadia, sem dar-se conta de que era também de imprudência, apesar do pensamento imediatamente anterior.

– Nada não é. Até o nada é, porque pra ser não sendo e não ser sendo, há que ser encantado. E se tudo é encantado, qualquer coisa tem que ser. Mas o homem, quando fica grande, se separa em dois: o desencantado fica por fora, vivendo a vida ordinária, e o encantado fica por dentro, perdido no escuro, e dentro da gente é muito maior do que a gente pensa, uma mata fechada em noite preta, cheia de córgo e mufumbo que vala-me Deus. Eu de vez em quando é que me reacho, o resto dos dia só passo, mofino.

– E como é que se chama essa raça de peixe? – quis saber Austregésilo.

– Beta. Só perde em encantamento pro peixe-alfa, que nada no ar, todo branco e ouro, mas esse só aparece no Ceilão mesmo, ninguém conseguiu trazer, ele foge pelas brecha dos avião.

– E o senhor sabe qual é a malícia pra pegar esse peixe, sem ofender ele? – tornou Hildebrando.

– Saber? Seeei… – o preto acendeu um cigarro que já tinha pronto, deu uma longa tragada e ficou baforando. O macaco saltara-lhe para o ombro e estendeu as mãozinhas viciosas.

– Deixe de pantim e diga logo de que jeito se pega o peixe, preto safado. – esbravejou Austregésilo, só menos raquítico que Felisberto, e sua expressão dizia “Aprendam como é que se trata esse povo.”

– Dizer? Diiiigo. Se esse menino forte, bonito, deixar eu tirar um tufo de cabelo dele, eu digo.

No entanto ele olhava para Adroaldo, que costumava distinguir-se por ser o mais rechonchudo, enquanto os elogios à beleza eram capitalizados por Hildebrando e Eufrosina.

– O cabelo é pra quê? – indagou Epitácio alegremente.

– Minha irmã tá fazendo um trabalho pra uma moça amarrar o rapaz que ela gosta, mas só falta um tufo de cabelo da cor e grossura do dele, e o desse galego é o mesminho.

Os meninos já estavam carecas de saber o que era macumba, catimbó, ao menos na versão da parentela toda católica.

– E o senhor vai cortar o cabelo dele com o quê? – questionou Abelardo.

O negro puxou da bainha da calça uma faca curta e de lâmina escura e esquisita, em forma de folha. Segurou-a baixa, a coisa mais inofensiva do mundo.

– Com essa faquinha aqui. Se voismicês tiverem uma tesoura aí…


Ninguém tinha. A essa altura os irmãos já quase haviam esquecido as suspeitas iniciais. Incentivaram Adroaldo a ir, dependia disso saberem o segredo pra cativar o peixe-beta. Só Afonsino ficou calado, cismarento: aquilo cheirava a artimanha de gênio, mas não se animou ainda a tomar uma atitude ou falar nada, por receio de cair em ridículo. Adroaldo foi, de dar pena, parecendo que um ímã o puxava para trás. O velho fez menção de segurar com delicadeza a franja do menino mas num bater de asas de beija-flor mudou o curso dos gestos e reteve-o ao modo de refém, premindo-lhe contra as narinas um pano tirado sabe-se lá de onde. A criança desfaleceu. Com o automatismo de uma contração, Felisberto se atirou contra o malfeitor, que se esquivou e repetiu o procedimento, botando-o para dormir também. Nisso os demais já iam longe, numa involuntária competição de atletismo, o macaco dando pulos de triunfo. Onde estavam ficaram as brasas das coragens que deixaram cair no chão, se apagando. O preto colocou os dois meninos no saco, esvaziando-o dos ossos de boi que venderia para serem pulverizados e aplicados no branqueamento do açúcar, não tivesse encontrado recheio mais valioso.


Ao acordar, Felisberto viu-se numa jaula de madeira amarrada com cipó, ela num recinto escuro e bafioso, só uma réstia difusa entrando por uma janelinha redonda a suas costas, no alto. Num canto na diagonal à esquerda, havia uma pilha de jornais velhos. Olhou avidamente para um relógio na parede à direita; estava parado, antiquário. Ao lado, numa outra jaula, Adroaldo, grogue. Com uma de duas chaves presas a um aro, o preto abriu a portinhola e pegou-o nos braços, enquanto ele soltava balbucios moles parecidos com os de Gumercindo quando falava em sonhos. Deitando-o numa rede que cruzava o aposento atulhado de coisas, o homem do saco pegou a faca, limpando-o numa perna da calça, e ato contínuo fez-lhe um talho na barriga. Adroaldo abriu os olhos com o súbito de uma lâmpada que se acende, viu a lâmina perfurar-lhe o ventre e pela expressão que se estampou em sua face, entendeu, embora ela talvez fosse mais de estupor que de sofrimento. Estendeu debilmente os braços, tentando defender-se, porém o máximo que conseguiu foi segurar-se ao algoz, como uma grávida se segura à parteira enquanto faz força para dar à luz e a dor remoinha dentro. A operação que o preto fazia em Adroaldo, muito pelo contrário, teria por consequência a luz se apagar de e para seus olhos. As mãos quase sumiam dentro do abdômen do menino, e de lá vinham sons paposos, gorgolejos nauseantes. A naturalidade com que eviscerava uma criança lembrou a Felisberto o modo com que eles, no engenho, partiam gogos no dente ou os empalavam inteiros no anzol, ou para tirar este último de dentro da barriga de uma traíra abriam-na a faca, sem pressa e indiferentes à agonia da criatura que também era divina, para todos os efeitos. Lembrou-lhe também, claro, as ocasiões em que empregados dependuravam bodes ou porcos de ponta-cabeça e os sangravam, colocando bacias por baixo para aparar o fluido a ser aproveitado na receita, e eles ficavam se lamuriando até a morte vir, ou aquele era o canto de chamar a morte, para abreviar a penúria? O sangue coava-se pela rede e gotejava no chão, logo era cascata. Felisberto sentiu-lhe o cheiro ferruginoso, e um outro, acre, que devia ser o do irmão. Se cada ser humano tem por fora um cheiro único como uma impressão digital, talvez também o tenha por dentro. Pensou em arrebentar a cela, mas não teve dúvida de que era resistente, e o que fez foi vomitar uma sopa de frutas semidigeridas e suco gástrico, depois do que recuou para o fundo, encolhendo-se, sentindo a vida fugir-lhe para os pés, embora esses também tenham ficado frios.


Quando o preto retirou de dentro de seu irmão uma massa carnosa compacta, lustrosa e vermelhescura, que rebrilhou inscrita no túnel inclinado de luz, Felisberto teve a impressão de que ela se contorcia de modo quase imperceptível ou repercutia algum movimento interno, um bicho independente que despertasse de um longo sono de impessoalidade. O preto não teve com o indiferenciado rebento qualquer consideração. Enrolando-o em algumas folhas de jornal daquela pilha feito um peixe, enfiou-se por uns degraus estreitos e sumiu. Adroaldo jazia na rede do mesmo jeito que costumava dormir nelas no alpendre da casa-grande, com a cabeça virada de lado e os braços e pernas para fora.

Felisberto refletiu que decerto teria o mesmo destino, notou que havia fios de cabelo de vários feitios ao redor. Lembrou da estória de Joãozinho e Maria, mas sentiu que, ainda que o negro tencionasse cevá-lo como a bruxa do conto, sendo que provavelmente com pirões de guaiamum, o truque de estender um ossinho no lugar do dedo não funcionaria. Não era uma estória da Carochinha… Era a realidade, voraginosa, estendendo os tentáculos em sua direção, no meio deles uma boca ou bico de polvo ou lula, soltando a tinta negra do que é funesto. Estremeceu ao perceber um vulto, ainda mais que num primeiro momento teve a impressão de tratar-se de uma criança, ou um duende. O macaco-prego pulou para a rede, que balançou de leve, olhou para o cadáver de Adroaldo com o mesmo interesse efêmero que dirigia a outros objetos no aposento. Felisberto apalpou os bolsos. Uma carambola e dois araçás. O macaco saltou de onde estava e se acercou, a cauda levantada. Felisberto estendeu um dos araçás e deixou que se lambuzasse. Apontou na direção das chaves que o negro deixara e tornou a exibir as frutas, refazendo essa operação algumas vezes. Os olhos amarelos do símio alternaram-se entre os termos da equação. Pôs-se a andar de lá até aqui, disparando olhares em inúmeras direções, como se os elementos antagônicos de seu pensamento fossem objetos exteriores, inimigos à espreita. Parecia atormentar-se com o dilema, saber que havia algo errado em abrir a fechadura, que o prisioneiro o estava ludibriando, e quem sabe ainda que sofreria as consequências. A tentação, entretanto, não era menos pujante que essas vagas abstrações, e a recompensa por ceder a ela estava bem diante dos olhos. Talvez o primeiro araçá tenha sido o fiel da balança, por deixá-lo cativo de seu sabor e travo, e excitar-lhe a curiosidade com relação à carambola, um gosto que decerto já sentira, mas podia estar esmaecido na memória. O fato é que o macaco pegou do aro e o deixou cair dentro da cela de Felisberto com a rapidez de um corisco, como se a gravidade do delito fosse medida pela duração. Os braços do magricela eram finos o suficiente para passá-los para fora, e apesar de sentir um vácuo gélido expandir-se no estômago feito uma bolha de sabão na extremidade do canudo conseguiu achar a fechadura e girar a chave nela, enquanto os bolsos eram saqueados. O macaco então correu para um canto e pôs-se a devorar as guloseimas, levando-as à boca com uma mão enquanto com a outra cobria os olhos, de vexame ou para isentar-se dos fatos subsequentes. Felisberto usou metade de seu autocontrole para não olhar o irmão e a outra metade para começar a subir os degraus.


Era uma escadaria estreita, escura, rangedeira. Espiralava em toda a volta da construção, sem dar para dentro ou para fora através de porta ou janela – era secreta. Do outro lado das paredes internas, vinham os sons variados de um lar burguês. Quase na extremidade dessa serpente, contudo, ele ouviu a voz do negro. Redobrou o cuidado, e após subir mais três degraus enxergou uma porta aberta, que dava para um quarto com velas acesas num castiçal, as cortinas marrons espessas e cerradas. Chegou-lhe uma outra voz, abafada e mortiça:


– Será que Deus me perdoa, Procópio? Eu num aguento mais.


– Perdoa, patrão. Perdoa. Alá tudo olha e compreende além. Nesse mundo cada um cuida de si e dos seu. Sua mulher e seus filho não pode ficar desamparado. – o negro ainda segurava o embrulho, o jornal já tingido, tinto.

– E o ideal é a ingestão ser efetuada assim, com o fígado cru. Se for pro fogo ele já perde algumas propriedades. Essa gente mitida a muderna diz que é superstição, mas esse ainda é o melhor remédio. O melhor não, o único. Faça uma forcinha, Esmaragdo. – disse uma terceira voz, condescendente porém enérgica.


Felisberto esticou-se um pouco e viu um homem ao lado do velho do saco. Já estivera no palacete, para tratar achaques da avó. Era o dr. Cangussu, em seus bastos e respeitáveis cabelos brancos, de volume e penteado românticos. Sobre um criado-mudo, havia uma garrafa pela metade do que o menino já sabia não ser água. Mãos esquálidas e pustulentas se estenderam na direção da encomenda. Alguns dedos tinham unhas compridas e sujas, outros não tinham unha nenhuma. Todos, entretanto, pareciam ter sido quebrados por um torturador. Vinha de lá um odor repulsivo, que apurara-se no ar viciado. O lacaio e o médico viraram-se na direção da janela, apesar de não haver paisagem a contemplar. Um rosto apolíneo avançou na direção do embrulho. Não, estava imóvel, demasiado imóvel, e reluzia à luz das velas, dourado. Uma máscara. Dessas que se usam em baile de carnaval, embora Felisberto tenha achado que era de ouro, pelo menos na cor. A parte inferior foi lentamente afastada para o lado, revelando uma boca descorada repuxada num sorriso estúpido e constante, o sorriso da fatalidade encrustado na própria vítima. Embora se vissem apenas os dentes da arcada superior, tinham uma extensão anômala, bestial, finos na base e tão aguçados nas extremidades quanto os de piranha. A realidade era muito pior que os piores contos, que os piores sonhos, e o fígado foi violado. O sangue voltou a minar, lembrando o sumo duma fruta suculenta. O engulho seco da única testemunha ocular, acocorada e espremida contra o balaústre, só não chegou a ser ouvido porque o próprio desgraçado soltava bramidos de ojeriza enquanto engolia o primeiro naco. Quando afastou a boca ensanguentada, algo caiu no piso de madeira com um tilintar discreto. Um dente. Com um gemido penoso, o homem se agachou para apanhá-lo. Nisso, os olhos por trás da máscara, cujas pálpebras inferiores pareciam por assim dizer derretidas, se fixaram no menino, que teve um espasmo três vezes mais violento que o de minutos antes, de séculos antes, quando se dera conta da presença do macaco. Foi o olhar rápido e fulminante de quando percebemos uma barata perto da parede.


Jogando a alma desfalecida nos ombros, o corpo do menino lançou-se em desabalada carreira escadaria abaixo, ouvindo passos atrás de si. Despencando e reerguendo-se com a insensibilidade de um boneco de engonço, alcançou o porão, empurrou febrilmente a pilha de jornais para baixo da janelinha e galgou-a. Socou o vidro fosco com o desespero dos que defendem a vida, até que quebrou. Alçou-se e quando já estava com meio corpo para fora sentiu uma fisgada no calcanhar. Chacoalhou-o e ouviu o grito do macaco, que fora lançado ao chão. Terminou de sair, ferindo os joelhos e as palmas nos cacos. Viu-se numa calçada, diante de um largo onde se desmontava uma feira. Correu por entre as barracas, sentindo frutas e legumes se destroçarem sob os pés com ruídos que o fizeram ter novos princípios de vômito. Ao atingir a igreja do outro lado, voltou-se e viu que saíra de um sobrado de vários andares. Fora pintado de ocre recentemente, mas a estátua no alto, um homem montado num cavalo empinado e de espada erguida, tendo por baixo guerreiros caídos com cimitarras nas mãos, denunciava-lhe a idade. Reconheceu a janela obstruída por uma cortina marrom. Não viu sinal do preto. Entrou na igreja, onde se oficiava a missa, ensanguentado como os mártires nos nichos, atravessou-a sob o burburinho de espanto dos fiéis, multiplicado pelas abóbadas, e deixou-a pela porta dos fundos. Correu a esmo pelas ruas enquanto o fôlego permitiu. Com a noite já entrada, não saberia dizer de que jeito, viu-se diante do palacete solar dos avós, tocou a sineta e caiu diante do portão, sacudido pelo choro que rompeu ao modo de um rio que transborda das margens no estalar da enchente.

O olhar dos irmãos, ao vê-lo de volta, foi o de quem contempla um fantasma. Estanislau urinou-se nas calças. A mãe correu para ele desmanchando-se. Mesmo Lupercínio Escarião, de sobrancelhas matagosas e ruga funda entre elas, ficou piscoso, contraiu a carantonha para trancar a comoção a ferrolho. Antes que lhe pedissem para desfiar suas desventuras, Felisberto ficou sabendo que os irmãos haviam contado uma estória díspar, que se bifurcava da inóspita verdade antes do crucial. Disseram que uma vez no alagado se espalharam, e quando deram por si Adroaldo e ele haviam sumido. Não lhe escapava que o pai poderia cometer atrocidades se soubesse que tinham abandonado dois deles, dois de si, ao perigo, correndo para a toca feito preás. Se ele mesmo executara um irmão que se acovardara ante o desafio de um valente, o castigo seria mais que surra de tabica ou galho de goiabeira, os costumeiros. Naquela noite, teve o privilégio inestimável de dormir abraçado à mãe, enquanto o pai se arranjou numa poltrona no escritório. Durante todo o dia seguinte, que o pai passou fora à caça de Adroaldo, os irmãos o cercaram de cuidados e atenção, porém mesmo quando a sós com ele não tocaram na carne-viva do assunto. Propunham enterrá-lo, portanto. Notou, contudo, que seu ar taciturno deixou-os alarmados. Tornara-se para eles uma assombração: assombrava-os o temor de que os delatasse, deitasse a verdade ao sol. Mesmo as irmãs tinham um comportamento estranho, afetavam naturalidade, apenas afetavam, não conseguiam mais chamá-lo de Feliz.


Voltou a ocupar sua cama dentre as que se distribuíam simetricamente no quarto grande, quase um dormitório escolar, lembrando oito casulos com os cortinados, agora sete, pois uma estava prenhe de vazio, o cortinado enrolado acima, oscilante, tal e qual a rede naquele porão. Demorou a dormir. Acordou de um pesadelo em que duas mulheres se devoravam em hora incógnita. Deu pela falta das respirações fundas dos irmãos adormecidos, do cheiro da urina de Epitácio, da voz de Gumercindo em idioma onírico.

– Você acredita nas almas? – perguntou uma voz cava.

Ouviu uma movimentação, sentiu que o cortinado era removido e suspenso. Mãos seguraram-lhe braços e pernas, taparam-lhe a boca, um lençol foi passado ao redor de seu pescoço, garroteando-o. Não tinha dúvida de que quem o puxava era Hildebrando, o peito de pombo retesado, tão certo quanto não era ele o mentor daquela ação concertada, o cérebro também de pombo. Não importava em que disposição estivessem, e quão frios seus dedos, eram seus irmãos, alguns dos quais vira nascer – os outros tinham assistido a seu nascimento. Todos, agora, reuniam-se para fazê-lo entrar na escuridão. Adivinhava inclusive a presença das três irmãs. O que teriam dito a elas?

– Você acredita nas almas? – repetiu Laurecília, que sabia imitar voz de fantasma, fazendo concha ao redor da boca com as mãos.

– Não. – ouviu-se a voz estrangulada de Felisberto dizer, e só para ele nasceu ali mesmo no quarto, ou seria no arco do peito?, um astro que emitia trevas da maneira que outros emitem luz. Caiu em direção a esse antissol em espirais, e nele desapareceu sua tenra infância, sua flor de inocência, sem deixar vestígio a não ser o despojo do corpo, mas algumas muriçocas ainda se nutriram de seu sangue antes que se tornasse imprestável.

Pela manhã foi encontrado suspenso sobre a cama, troncho, a cabeça pendente a contrapelo num ângulo doloroso, os cabelos derramados, os olhos semicerrados, o lençol ao redor do pescoço amarrado no gancho do cortinado. Ninguém se perguntou de que jeito o conseguira. Felisberto, era fato notório, trepava em qualquer canto, e sabia muitas artimanhas. Ao vir à tona que fugira após esmagar o crânio de Adroaldo com uma pedra por causa de uma fruta que lhe roubara, os conhecidos da família sentiram repugnância pela compaixão que haviam alimentado antes. De presente do natal que vinha chegando, os irmãos Escarião pediram peixes-beta.


Contista e poeta, João Paulo Parisio estreou em 2014 com a coletânea de contos “Legião Anônima”. Em 2015, lançou “Esculturas Fluidas”, poemas. Ambos pela Cepe Editora e incluídos na seleção de melhores livros do ano da Tribuna de Santos. Tem textos veiculados em publicações literárias, como o Pernambuco e o Rascunho, e sites como Interpoética. Participa ainda este ano do segundo volume de Ficcionais, onde “escritores revelam o ato de forjar seus mundos”. Veja o vídeo sobre a noite na qual este conto foi criado.

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